quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Histórias da gente Brasileira: Império - Volume 2

Assim como o primeiro volume, trata-se de um livro indispensável. Leitura agradável, curiosa, surpreendente, às vezes até engraçada.

Mas uma coisa me incomodou muito: a pontuação. O livro inteiro é recheado de vírgulas mal colocadas. Não são casos isolados, todos os capítulos apresentam essa falha, em geral, mais de uma vez.

Dadas as credenciais da autora, não sei como isso é possível. Mary del Priore já publicou 45 livros, donde suponho que ela escreve muito, e talvez com pressa, e talvez lhe fizesse bem contar com a assistência de um(a) revisor(a). Se não ela pessoalmente, ao menos a editora deveria prover tal revisão.

Uma pessoa me comentou: "Mas ela não é professora de Português". Não importa. Muita gente já leu, está lendo e muitas mais ainda vão ler os livros da autora. Um livro coalhado de erros gramaticais (ainda que limitados ao uso equivocado da vírgula) é um desserviço aos leitores, principalmente aos mais jovens, cujo aprendizado da língua se dá, e assim se espera que seja, mais pela imitação do que pela memorização de regras da gramática.

Não me entendam mal. A obra de Mary del Priore é um portento, não pode ser desprezada nem subestimada. Cá com meus botões, imagino outra explicação, além do volume e da possível pressa, pra esses erros: em seu trabalho de pesquisa, ela lê muitos textos das épocas colonial e imperial do Brasil. Documentos, testamentos, autos processuais e quejandos. Quem já se debruçou sobre textos dessa natureza sabe que eles costumam ficar bem abaixo do padrão literário e das exigências da norma culta. Ainda mais que se trata de uma época em que muitos dos autores de tais textos tinham acesso a uma educação bastante deficiente. Pra piorar, a própria norma culta foi mudando com o tempo, e textos que, há um ou dois séculos, eram impecáveis estão hoje em frontal desacordo com a gramática moderna. Talvez - apenas talvez - Mary del Priore escreva numa gramática contaminada pela dos textos sobre os quais ela passa tanto tempo debruçada. Não que isso desmereça seu trabalho. Apenas reforça a necessidade de revisão.

No mais, aproveitem o livro. Ninguém vai se arrepender dessa leitura.

quarta-feira, 12 de maio de 2021

Rivers of Babylon – Um anseio de liberdade

 

Junto aos rios da Babilônia nós nos sentamos e choramos com saudade de Sião.
Ali, nos salgueiros penduramos as nossas harpas;
ali os nossos captores pediam-nos canções, os nossos opressores exigiam canções alegres, dizendo: “Cantem para nós uma das canções de Sião!”
Como poderíamos cantar as canções do Senhor numa terra estrangeira?
Salmo 137:1-4



Esta é a história de uma descoberta. A descoberta de uma canção. Uma descoberta bastante gradual, surpreendente e, afinal, gratificante. Mais. Gratificante é pouco. Ouso dizer, porque é verdade, tocante. Ao menos pra mim.

Tudo começou quando o Spotify me trouxe uma música que eu não ouvia desde a minha infância e de cuja existência eu nem lembrava mais: Rios da Babilônia, interpretada por Perla.



Grata surpresa, pois se trata de linda música, que entrou imediatamente pra meu acervo de músicas “curtidas”. Puxada por ela, não demorou muito pra que eu me deparasse com sua original: Rivers of Babylon, interpretada pelo grupo Boney M.



Ocorre que eu ouvia essa música em inglês imaginando ouvir o que Perla dizia em sua versão. Não tenho ouvido muito bom, então não entendo o que ouço em inglês a menos que me concentre, e olhe lá. E a verdade é que eu só tinha a oportunidade de ouvir essa música enquanto dirigia, quando era impossível dedicar a qualquer letra a devida atenção. Eu me limitava a pensar: como uma letra tão breguinha pode estar embalada numa música tão linda? Até que me deparei, por acaso, com um vídeo que revelava: essa música, que fez tanta gente dançar quarenta anos atrás, tem a letra extraída de dois salmos da Bíblia! Quando eu fui conferir, tomei um choque! Por que um grupo de estética tão discotheque cantaria um salmo? Conferindo o primeiro salmo citado na letra, a coisa toda tomou outra dimensão pra mim. Mas explicar isso requer um pouco de História.

No continente americano, os negros nunca tiveram muita dificuldade em galgar posições no mundo artístico, ao menos quando a arte em questão é a música. Negro spiritual, gospel, blues, jazz, rock, reggae, samba. A lista é longa. Mas essa aceitação de arte e de artistas negros nada tem a ver com atribuir aos negros, enquanto pessoas, o status de igualdade em relação ao seu público, majoritariamente branco. É que a profissão de artista carrega, desde muitos séculos antes de nós, a marca da subalternidade. Quando separada de suas funções sagradas, ligadas ao culto – pagão ou cristão, tanto faz – a arte sempre esteve a serviço de uma aristocracia opulenta. Músicos, pintores, escultores, arquitetos, não eram artistas no sentido moderno que damos à palavra. Eram serviçais. Estavam mais para artesãos, trabalhando sempre para atender à demanda e ao gosto do nobre que os sustentava, ou que lhes encomendava algum serviço avulso. Na música, especificamente, Beethoven foi o primeiro grande compositor a romper com esse modelo. Ele foi um dos primeiros artistas, isto é, uma pessoa dedicada a usar a arte como meio de expressão pessoal, e a assumir os riscos de se sustentar por conta própria, expondo-se à possibilidade de ver sua arte rejeitada pelo público, cujo gosto poderia destoar do seu.

Ocorre que essa independência artística sempre foi privilégio de poucos. O próprio Beethoven pagou um alto preço – em pobreza e ostracismo – por ela. Nos séculos 19 e 20, os artistas continuaram a ser vistos como serviçais, não mais da nobreza, mas da nova elite, a burguesia. E isso valia, mais que tudo, para os artistas ligados ao entretenimento: músicos, atores e dançarinos. Não era vergonha nenhuma contratar uma banda para animar sua festa, ou uma trupe de atores, ou vê-los atuar no teatro, no cinema, ou ouvir cantores e instrumentistas no rádio ou na vitrola. Mas pessoas “de família” evitavam essas profissões. Isso era coisa pra gente “da vida” ou, na melhor hipótese, para subalternos.

É aqui que nossa canção entra. Ela trata da servidão a que os judeus estavam submetidos em seu exílio na Babilônia. Mas é dos judeus que os intérpretes estão falando? Não parece. Não quando vemos quem são os intérpretes, e como eles se expressam. No vídeo abaixo, chama a atenção a falta de sorriso no semblante da principal vocalista. Na verdade, ninguém sorri. Não é uma música alegre. É um lamento. E uma denúncia. Nós vemos aqui pessoas negras, que tomam para si as dores que outro povo viveu há dois milênios e meio. Em vez do Eufrates ou do Tigre, os famosos rios da Babilônia, poderíamos estar ouvindo falar do Mississípi. Do Missouri, do Rio Grande, do Hudson. Poderia ser o Amazonas, o São Francisco, o rio Paraná, o Tietê, o Paraíba do Sul. Todos os rios em cujas margens tantos milhões trazidos da África já se sentaram e choraram a saudade de sua terra natal, a dureza e a crueldade de seu cativeiro. E de seus captores. Sim, seus captores cristãos, que mais que todos deveriam entender a enormidade do seu crime. Mas não. Seus captores, sem se dar conta de que, nas palavras de seu mais precioso livro, os “homens perversos” agora são eles, pedem que seus cativos cantem pra eles, toquem pra eles, dancem pra eles. “Vocês são bons de ritmo; continuem, nós apreciamos muito sua arte. Mas não ousem, claro, julgar-se iguais a nós”. Primeiro como escravos, depois como serviçais contratados sob demanda, ou mesmo como artistas de sucesso – afinal, cumpriam bem sua função de entreter – a história da música negra na América (toda ela) bem que poderia em grande parte ser resumida desse modo.

Claro que essa é uma interpretação minha. Mas eu passei por uma curiosidade adicional. Mostrei o vídeo e a letra pra minha filha. Do alto de seus meros oito anos, então, ela me disse: “Eles estão falando da escravidão que viveram aqui, depois de capturados na África. Estão falando do que nós fizemos a eles. Embora o exílio babilônico seja assunto corrente em qualquer escola dominical ou sabatina, não passou pela cabeça de minha filha que aquelas pessoas negras estivessem cantando outra coisa que não suas próprias dores, sofridas sob o jugo da escravidão ou da discriminação.

Uma pesquisa posterior me revelou que essa canção tem origem ainda mais antiga que seu estrondoso sucesso com o grupo Boney M. em 1978. Trata-se de uma composição rastafári jamaicana, o que explica ainda melhor sua vinculação aos temas bíblicos, e é de 1970. Ainda assim, minha leitura, acho, não se invalida. Afinal, essa é a beleza da arte: ela se presta a múltiplas intenções, expressões e impressões. A minha impressão tornou essa canção muito valiosa e, como eu já disse, muito tocante pra mim. E hoje, 12 de maio, véspera da Abolição, tema que me é muito caro, inclusive pela negligência a que a data tem sido relegada em nosso Brasil sem memória histórica, sinto-me ainda mais movido a partilhar o sentido e a beleza que os rios da Babilônia agora me inspiram.

Por amor à brevidade, despeço-me com as palavras do outro salmo citado na canção. Que elas nos mantenham vigilantes, e nos guardem, para sempre, de assumir o papel de perversos opressores de nossos irmãos.

As palavras dos meus lábios e o meditar do meu coração sejam agradáveis na tua presença, Senhor, rocha minha e redentor meu! Salmo 19:14 

 

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