domingo, 28 de agosto de 2011

Quando a civilidade é só para os idiotas

Cena 1

Depois de esperar pacientemente minha vez de passar num cruzamento com semáforo, tive de tirar o pé pra não esbarrar com um motociclista que, sem a menor cerimônia, achou que o sinal vermelho pra ele lhe dava muito mais direito de passar do que o verde pra mim. Pior, antes de cruzar comigo, ele ultrapassou rapidamente vários carros já parados por conta do mesmo sinal vermelho. Não pude deixar de me lembrar que, na minha cidade, a maioria absoluta dos motoristas acha absurdo que um semáforo tenha fotossensor para multar os que avançam o sinal. No momento, nenhum semáforo o tem, porque o contrato da prefeitura com a empresa que administrava os equipamentos de fiscalização eletrônica foi rescindido devido a irregularidades cometidas por essa empresa em outros Estados. Jornalistas engrossam o coro dos que querem o fim dos fotossensores e radares. Políticos fazem disso sua plataforma de campanha eleitoral. E são eleitos. Pra mim, essa gente toda não passa de uma canalha.

Cena 2

No estacionamento do shopping, vejo uma mulher guardando as compras no porta-malas do carro. Sua filha, em pé dentro do carrinho de compras, pega dois sacos plásticos de acomodar frutas ou verduras, não usados, e joga no chão do estacionamento. A mãe faz vista grossa. Enquanto eu cato as coisas de que vou precisar para sair do carro e fazer minhas compras, assisto essa cena e fico indignado. A mulher empurra o carrinho pro lado, acomoda a filha no banco de trás e ignora os sacos plásticos largados no chão. Entra, liga o carro e vai sair. Eu já estou farto de ver cenas desse tipo. Antes que ela saia, pego calmamente os sacos no chão, percorro a lateral direita do carro e prendo os dois sacos na palheta do limpador de para-brisa. Ela demonstra surpresa e eu digo em um tom capaz de atravessar os vidros fechados: “Você esqueceu de recolhê-los”. Ela tenta se explicar: “Eles 'caíram' do carrinho...”. Eu não perco a calma, mas minha paciência se esgota. Abandono o papel de quem acredita que ela “esqueceu”. Respondo: “É, mas não lhe custava tê-los pegado”. Acho que ela fica chateada. Parece-me que ela desprendeu o cinto e saiu do carro para recolher os plásticos. Espero que o tenha feito porque eu não tinha interesse de ficar pra ver. Dei as costas e fui embora.
A essa altura, meus pensamentos eram mais ou menos esses: a classe média é a escória da nossa sociedade. Não dispõe sequer da desculpa de não ter tido oportunidade, de não ter estudado, de não ter dinheiro, de não ter instrução. Age desse modo por grosseria pura e simples, travestida de indolente desleixo. Nesse comportamento está a raiz de vivermos num dos países mais injustos, corruptos e desumanos do mundo. Ah, mas eles vão ouvir. De mim, vão.

Diário nada secreto

Nos primórdios do tempo, a palavra blog era uma abreviação de web log, ou seja, um diário na Rede, pra todo mundo ler, ao contrário daqueles diários escritos em cadernos com pequenas fechaduras, redigidos apenas para os olhos de seus autores. Os jornalistas se apossaram da ideia, e hoje blog geralmente é uma coisa bem diferente do conceito original.
Bem, nunca foi minha intenção praticar evasão de privacidade, mas me atrai ter a opção de partilhar algumas experiências do meu dia a dia, principalmente quando elas embutem algo de interesse público. Ou pelo menos do que eu acho ser de interesse público.
Eu até poderia me valer das redes sociais pra isso. Mas não seria suficiente. O que tenho a dizer não diz respeito apenas a meus “amigos” e “seguidores”. Minha intenção é que qualquer ser humano que esbarre nestas páginas tenha a sua disposição minhas impressões acerca do que, tendo acontecido comigo, talvez seja do seu interesse.
Então, está combinado. Eventualmente, intercalarei meus textos “impessoais” com relatos pessoais típicos de um diário. É claro, esses relatos provavelmente virão acompanhados de opiniões acerca do sentido deles para a coletividade.
Começo no próximo post.

sábado, 27 de agosto de 2011

A natureza contra a arte? (parte 1)

Não é de hoje que o senso comum ensina ter a natureza uma sabedoria muito superior quando comparada às nossas pífias artificialidades. Faz todo o sentido. Afinal, quem somos nós para nos julgarmos melhores que a natureza? Mas eu tenho um prazer especial em desafiar o senso comum. Não posso perder uma oportunidade como essa.
Pra começo de conversa, o que significa a palavra “artificial”? Como toda palavra, esta tem vários significados, mas vamos ao primitivo. Os demais nasceram por derivação. Artificial é tudo que se produz “por arte ou indústria do homem e não por causas naturais”1. Colocando de uma forma mais etimológica, artificial é o que se faz com arte, e arte só um ser humano faz. Resta saber o que é arte. Esta palavra nos evoca imediatamente obras de pintura, escultura, arquitetura, música, teatro, cinema, etc. Mas esse sentido também é derivado. Primitivamente, arte é tradução da palavra grega τέχνη (téchne), ou técnica, que “é o procedimento ou o conjunto de procedimentos que têm como objetivo obter um determinado resultado”2. O que nós comumente pensamos como arte tem esse nome porque todo trabalho dito artístico requer o uso de uma técnica para que seja realizado3. Produzir tijolos a partir do barro requer técnica. Pintar a Capela Cistina também. O tempo e os propósitos se encarregaram de distinguir uma forma de técnica/arte da outra. Mas é dessa identidade primitiva entre técnica e arte que nasceu o conceito de artefato, o que se fez com arte, o que é artificial.
Essa pequena investigação nos permite enxergar em tudo o que é artificial o resultado de algum procedimento, simples ou complexo. Ora, não é possível executar um procedimento sem ter o conhecimento de como executá-lo. Portanto, toda artificialidade é fruto da aplicação do conhecimento para algum fim prático. E o conhecimento é inevitavelmente cumulativo. Um saber se agrega a outro, gerando novo saber, que origina nova técnica, que gera novos artefatos. É quase um moto-contínuo. Se há algo de belo na aventura de ser humano, eu vejo parte dessa beleza em nossa capacidade de criar soluções para nossos problemas a partir do conhecimento que acumulamos. E se estamos falando de beleza, vejo aqui reconciliados técnica e arte, esta última entendida como uma atividade que cultiva o belo, ou, como diria Platão, o Bem.
Espero que o compartilhamento desse meu – como direi? – fascínio permita antever um caminho capaz de reabilitar a nobreza perdida da ideia de “feito pelo homem”. Há muita arte nas coisas artificiais.
3 “Portanto, a técnica confundia-se com a arte, tendo sido separada desta ao longo dos tempos”. IDEM.

domingo, 21 de agosto de 2011

O outdoor da discórdia

Eu realmente espero poder dedicar este blog a outros assuntos, mas este não quer esfriar. Tive ontem a desagradável oportunidade de ler as notas sobre um outdoor em Ribeirão Preto, SP, que a justiça mandou retirar, o que já ocorreu, porque o cartaz teria conteúdo homofóbico. Não consigo deixar de achar equivocada essa decisão. E pra não gastar meus argumentos, sugiro a leitura dos comentários de cada uma das notas acima.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Evangelho e homofobia (parte 3)

Eis um tema que se revelou mais cansativo do que eu imaginava ao iniciá-lo. Mas espero concluir com estas (muitas) linhas. No último texto, defendi que evangélicos, cristãos e religiosos em geral que valorizam o ser humano e prezam a liberdade, inclusive a própria, deveriam estar à frente de e não contra esforços para criminalizar a homofobia. Vejamos se fica claro o porquê.

Nos meus textos sobre esse assunto, tenho insistido em exemplificar o que é considerado “pecado” por várias correntes religiosas. Dentre esses está, para a maioria das denominações cristãs, toda e qualquer forma de homossexualidade. Ocorre que esse “pecado” em especial parece ser alvo de uma indignação impressionante da parte dos religiosos, a ponto de pessoas comentarem em blogs que vítimas, inclusive fatais, de violência homofóbica estão apenas colhendo o que plantaram: o resultado de sua rebelião contra Deus. Citam textos bíblicos do tipo “o salário do pecado é a morte”, “Deus não se deixa escarnecer; porque tudo o que o homem semear, isso também ceifará”, e outros do gênero para, intencionalmente ou não, justificar a violência e até o assassinato. Aliás, mencionar que essa justificativa possa ser feita “sem intenção” até me indigna, porque uma pessoa capaz de argumentar dessa forma não tem o direito de ser inocentada, por suposta ingenuidade, da culpa de incitar, sim, a repetição desse tipo de violência. Certos tipos de ignorância pesam mais contra que a favor de seus portadores.

Nessa luta, evangélicos e católicos dão as mãos para barrar as tentativas de criminalizar a homofobia argumentando que perderão o direito de poupar seus filhos da corrupção gay, ao não poder protestar contra a visão infame de “bigodudos” se beijando em restaurantes, lésbicas andando de mãos dadas nas ruas ou sendo babás de suas filhas, ou à disseminação irrestrita da cultura gay em passeatas, programas de tevê e revistas “mundanas”. Temem a corrupção da sociedade e querem frear essa degradação. Os evangélicos, particularmente, têm uma visão um tanto “israelita” do problema, considerando que não podem ser cúmplices, por ação ou omissão, do pecado que pode atrair a maldição divina sobre toda uma nação conivente. É claro que não faltam textos bíblicos para corroborar essas teses.

Diante de tudo isso, vejo-me obrigado a entrar no terreno “teológico” para ver aonde tal raciocínio nos leva. Vou me deter em dois dos textos preferidos pelos campeões da moral e da fé cristã. O primeiro sequer menciona a homossexualidade, mas assim mesmo é um dos prediletos dos que combatem o “perigo arco-íris”.


Ficarão de fora os cães e os feiticeiros, e os que se prostituem, e os homicidas, e os idólatras, e qualquer que ama e comete a mentira. Apocalipse 22:15
Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus. 1 Coríntios 6:10


É curioso perceber que, para essas pessoas, parece que esses textos só se aplicam, de forma explícita ou velada, à questão homossexual. O que aconteceria se a mesma medida fosse usada para os demais pecados citados? Digo isso porque a Bíblia é contundente ao condenar, não só aqui mas de forma sistemática, todos esses pecados. Todos já foram em algum grau apontados como responsáveis pela derrocada espiritual, moral e até militar do povo de Israel. Mas parece que a comunidade religiosa cristã de nossos dias, tão ocupada que está em combater o “pecado de Sodoma”, esqueceu que por coerência deveria estar combatendo com mesmo vigor os outros pecados mencionados.

O primeiro deles, supondo que ser cão não seja pecado, é ser feiticeiro. Esse é um terreno perigoso, porque no meio evangélico, e, dependendo do grau de “fundamentalismo”, no católico também, essa condenação recai hoje sobre os que praticam o candomblé e até sobre o espiritismo, além de outras praticas religiosas animistas, xamânicas ou místicas das mais variadas formas. Por que não vemos evangélicos e católicos clamando pelo fechamento dos terreiros de candomblé e dos centros espíritas? Acaso a “feitiçaria” é um pecado menos grave do que a “sodomia”? Seu poder de corromper suas crianças é menor? Já imaginaram quantas crianças evangélicas são bombardeadas com elogios à cultura afro-brasileira nas escolas, na tevê, na música, no cinema, na literatura? Isso não vai comprometer a educação cristã que recebem em casa? Que tal censurar “Chico Xavier”, “Nosso Lar” ou “As Mães de Chico Xavier”, exibidos no cinema e propagandeados pelas mesmas novelas que dão tanto apoio à causa gay? Vamos banir “Harry Potter” e “O Senhor dos Anéis” das locadoras, da internet e das livrarias! Isso não pode corromper seus filhos?!

Só que tal coisa não é possível. A lei não deixa. Porque nosso país oferece a seus cidadãos liberdade de expressão e de culto, protegendo inclusive os templos, não só católicos e evangélicos, mas também os centros espíritas, os terreiros de candomblé, os pagodes budistas e as rodas do Santo Daime. Agora digam-me: se alguém começar a atacar terreiros, mães e pais de santo e até sócios do Ilê Aiyê, e estes vierem a público requerer a proteção do Estado contra a discriminação religiosa que estão sofrendo, os evangélicos e carismáticos se atreverão a dizer que o problema é deles, que estão colhendo o que semearam, que sobre eles pesa a maldição de Deus até que se convertam? Argumentarão que eles estão buscando privilégios pra continuar tendo a liberdade de disseminar sem embargo sua corrupção espiritual em nossa sociedade? A lógica é rigorosamente a mesma em relação à causa anti-homofóbica.

O segundo pecado citado acima é a prostituição. Que, aliás, não é crime em nosso país. Crime é explorá-la, ou seja, um terceiro ganhar dinheiro com a prostituição alheia. Até hoje as prostitutas são alvo de violência e discriminação. Muitas apanham e morrem apenas por serem prostitutas. Pior, há quem apanhe apenas porque parece ser prostituta. Qualquer semelhança com pai e filho agredidos porque expressaram carinho mútuo e foram confundidos com homossexuais não é mera coincidência. Como deve a comunidade cristã se portar quando associações de prostitutas saem às ruas ou vão à mídia pedir o fim dessa violência moral e física? Azar delas, “o salário do pecado é a morte”? Indo mais longe, a visibilidade delas em lugares onde só “pessoas de família” deveriam circular não se constitui uma influência ainda mais nefasta para nossas inocentes crianças do que a visão dantesca de dois homens se abraçando? Não deviam elas ser banidas da visão das pessoas de bem?

Outro pecado citado é o da idolatria. Ah, esse é um dos meus “preferidos”, porque coloca em campos opostos católicos e evangélicos, já que os últimos consideram idolátrica a veneração católica aos santos e suas imagens, aos símbolos e relíquias sagradas da igreja romana. E aí, quem vai encarar? Cadê os Gideões modernos que não se habilitam a derrubar os altares de Baal que infestam nosso “Israel” contemporâneo? Por que os zelosos evangélicos não tentam evitar que seus filhos sejam expostos à visão de crucifixos em paredes, ruas, monumentos e órgãos públicos? Isso pra não falar dos pescoços de milhares de pessoas nas praças, no comércio, na tevê, no trabalho, nas creches, nas escolas e – pasmem! – alguns desses idólatras são professores dos seus filhos! Vocês leem a Bíblia? Fazem ideia do horror que Deus dedica à idolatria? Vocês têm menos medo de que seus filhos se tornem idólatras do que de vê-los achar que ser homossexual é normal?!

Mas sabem o que aconteceria se, tomados por fervor religioso, alguns se dispusessem a repetir o heroísmo de Gideão? Seriam enquadrados como criminosos, por discriminação religiosa, talvez, e por vilipêndio a objeto de culto religioso, com certeza. Nós vimos algo parecido no gesto do pastor que chutou a santa, muitos anos atrás. Na época, eu vi pessoas da minha igreja de então, sempre bastante crítica à Universal do Reino de Deus, dizerem que ele não tinha errado, que idolatria deveria ser combatida daquela forma mesmo. Na minha opinião, se quisessem ser coerentes, os evangélicos que consideram intolerável ver homossexuais lutarem pelo direito de não ser enxotados de lugares públicos deveriam ter a mesma coragem de combater com veemência a exposição onipresente de imagens católicas, ou mesmo as dos orixás no Dique do Tororó, dispondo-se a derrubá-las em nome do Senhor dos Exércitos, ainda que pra isso tivessem que suportar a prisão, ver o mundo se voltar contra eles e fazer deles os novos mártires da fé, tão admirados no futuro quanto são hoje os que eram jogados aos leões por pregar contra a adoração a César.

Este post não terá fim se eu for falar individualmente dos devassos, dos adúlteros ou dos bêbados. Vamos acabar com o funk carioca; vamos impedir que os MCs Créus apresentem à sociedade as Mulheres Melancias; vamos varrer do mapa as coleguinhas de palco do Luciano Huck; abaixo a minissaia! Ah, e às moças que forem estupradas ao voltar de uma festa à qual foram com roupas provocantes, vamos dizer que “Deus não se deixa escarnecer...”. Vamos permitir, como antigamente acontecia em nossa sociedade brasileira, nos tempos em que prevaleciam a moral e os bons costumes, que mulheres descasadas, adúlteras, mães solteiras ou amasiadas sejam apontadas na rua e, pra não darem mau exemplo, até expulsas de recintos “familiares”. Vamos instituir a lei seca, não no trânsito, mas em tudo; acabar com a propaganda de cerveja; fechar todos os bares. O exemplo americano do início do século passado foi tão bem sucedido, por que não imitá-lo? Vocês têm menos medo de que seus filhos sejam expostos a toda essa imoralidade do que de saber que o professor deles é gay? Uma filha alcoólatra dá menos desgosto ao pai do que uma lésbica?

Estes últimos exemplos mostram que, para o bem ou para o mal, a sociedade não aceitaria a tutela religiosa nesses casos. Então os religiosos têm de se conformar em saber que o direito de se vestir de modo “indecente”, de ser sexualmente “devasso”, de adulterar, de se separar, de fazer sexo sem casar, de ajuntar-se, é uma escolha pessoal que só diz respeito a quem a faz. Se terceiros se sentem incomodados com a possível influência que esses casos podem ter em suas próprias convicções ou nas de seus filhos, cabe a eles munir-se das defesas que acharem apropriadas, mas não lhes cabe o direito de interferir nas escolhas dos que não acreditam no que eles acreditam, menos ainda de ditar onde e quando essas escolhas devem ser exercidas.

Como parêntese, quero lembrar que certos comportamentos ainda são considerados ilegais por ferir aos “bons costumes”. Fazer sexo em praça pública é um deles. Não estou advogando que deixe de ser. Adultério já foi crime e não é mais. Tampouco defendo que volte a ser. Matar uma esposa adúltera em defesa da honra já foi legal. Felizmente não é mais. Eu sei que os valores de uma sociedade são instáveis e que isso, para uma pessoa cuja religião dita verdades “imutáveis”, é difícil de aceitar. Mas o que defendo aqui é que, numa sociedade laica, o direito de uma religião impor às pessoas como elas devem agir limita-se aos que aceitaram essa tutela, ou seja, aos seus fiéis. O que passa disso, permitam-me a paráfrase, “procede do Maligno”.

Vou tentar resumir toda a argumentação dos meus últimos três textos da seguinte forma: evangélicos, católicos, cristãos em geral, têm todo o direito de acreditar que é pecado ser homossexual. Mas assim como nenhum cristão decente pode considerar que um espírita ou pai de santo deveria ser privado do direito de casar e criar filhos porque pratica uma suposta forma de “feitiçaria”, não pode achar que um casal homoafetivo não tem esse direito por praticar “sodomia”. Assim como um católico não pode ser privado do direito de expor em público sua “idolatria”, um homossexual não pode ser privado do direito de expor sua afeição pelo mesmo sexo. Fazer sexo em praça pública é proibido a todos, homossexuais ou não. Abusar crianças também. Mas beijar e abraçar é permitido a heterossexuais em qualquer situação informal; então por que deveria ser proibido a homossexuais? O nome disso é discriminação, e no pior sentido. A Bíblia é feroz na condenação do adultério. Até Jesus, ao proibir o divórcio e chamar de adúlteros os divorciados que voltam a casar com terceiros. Mas uma adúltera protagonizou uma das mais belas cenas da vida de Cristo, que a salvou do apedrejamento. Não é absurdo que dois mil anos depois os cristãos ainda prefiram estar entre os apedrejadores de gays? O pecado de ser “efeminado” merece menos tolerância do que o de ser “adúltero”? Um homossexual tem menos direito de exigir respeito do que uma “mulher descasada”? Se as igrejas, de bom grado ou não, toleram conviver num mundo cheio de pessoas que estão “em pecado” de adultério, mas que não precisam temer o apedrejamento físico ou moral, por que não podem suportar viver num mundo cheio de homossexuais assumidos e livres do mesmo temor? Enfim, considerar pecaminoso um comportamento é um direito inalienável de toda confissão religiosa. Isso em nada impede que essa mesma confissão ensine seus fiéis a ser tolerantes e a se posicionar contra, e não a favor da intolerância.

Afinal, se há uma lição do Evangelho que jamais deveria ser esquecida, é o amor ao próximo. Muitos evangélicos se escondem atrás do argumento de que isso não os obriga a amar o pecado. Afinal, Deus “odeia” o pecado. Eu não quero entrar nas implicações teológicas desses argumentos, mas gostaria de considerar isto: se você acha que seu “ódio” ao pecado justifica revoltar-se com um gay que foi agredido na rua por sua “sem-vergonhice” em vez de revoltar-se com seus agressores; se você acha que exigir o direito de não ser achincalhado moralmente por ser homossexual é abuso; se você acha que exigir uma lei que proteja um travesti dessas formas de agressão é atentar contra seu direito de crença, então você odeia o “pecador”. Toda argumentação em contrário é mera falácia. Quer ser cristão de verdade? Defenda o oprimido, quem quer que seja ele, não o opressor.

sábado, 13 de agosto de 2011

Evangelho e homofobia (parte 2)

Cumprindo o que prometi, trago um novo texto sobre o assunto. Desta vez, quero me deter no tema do projeto de lei que criminaliza a homofobia. Seria muita pretensão da minha parte dizer que tenho repostas para as questões que esse projeto de lei levanta. Mas este blog não tem o nome que tem à toa. Este espaço existe para que assuntos difíceis possam ser pensados, não resolvidos. Não há espaço pra dogma aqui.

Então vamos ao trabalho. Sempre que algum noticiário ou blog abre na internet espaço para comentários sobre o assunto, eu vejo evangélicos, às vezes com muita veemência, expressarem o temor de que serão perseguidos porque não poderão pregar que homossexualismo é pecado; não poderão citar os famosos textos bíblicos que condenam de modo contundente todo desvio da sexualidade considerada “sadia”; não poderão chamar ao arrependimento os pecadores empedernidos que insistem em suas abomináveis práticas homossexuais, pedófilas, zoófilas e afins. Eu não sei que fim vai ter esse projeto de lei, mas preciso deixar claro que eu também me preocupo com a possibilidade de que essas crenças e sua pregação sejam consideradas crimes de homofobia. No primeiro texto meu sobre o tema, defendi minha posição com base no princípio da liberdade religiosa. Invoco aqui esse mesmo princípio para defender que evangélicos, católicos, muçulmanos, judeus e quem mais quiser têm todo o direito de achar que homossexualidade é pecado. E de pregar isso. E mesmo de tentar convencer seus potenciais prosélitos de que precisam acreditar nisso. Negar esse direito é um ato de violência contra a liberdade de expressão, de culto e de crença.

No entanto, isso não significa que eu sou contra tornar crime a homofobia. Não sei como essa equação vai ser resolvida, mas considero, sim, que homofobia deve ter o mesmo tratamento que a lei dá à “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” (Lei nº 7.716, de 5 de Janeiro De 1989, Art. 1º). Racismo é crime. Discriminação religiosa é crime. Xenofobia, se entendo bem o texto da lei, é crime. E o artigo 20 da mesma lei ainda torna crime “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito” dos tipos já mencionados. Aí é que o bicho pega. O próprio ato de pregar a discriminação ou preconceito já é crime. Já vi juristas dizerem que nos Estados Unidos uma lei assim seria inconstitucional, porque a liberdade de expressão, lá, é tão sagrada que você pode disseminar quanto ódio você queira: o crime só vai existir quando o ódio deixar de ser discurso para se tornar prática. Reitero que sou profundamente ignorante quanto ao direito, mas aprendi que nenhum direito é absoluto, e essa é uma das razões pra nossa lei considerar que a liberdade de expressão deve ser tolhida quando usada para disseminar o ódio. É uma questão de pesar o que vale mais: o direito de dizer o que se pensa ou o de não ser alvo de campanhas discriminatórias que fatalmente resultam em vítimas de violência. Acho fácil escolher.

O que acontecerá, então, se essa lei for alterada para tornar crime a homofobia, seja ela efetivamente praticada ou apenas induzida ou incitada? Os religiosos ainda poderão pregar contra a homossexualidade? Depende, claro, de como vai ficar o texto da lei, e eu não sou futurólogo. Depende ainda de como os tribunais vão interpretar o texto da lei. Mas talvez dependa muito mais de como as igrejas e demais agremiações religiosas querem ter o direito de tratar desse assunto. Porque a história mostra que as religiões monoteístas, aí incluídas o cristianismo, o judaísmo e o islamismo, são discriminatórias por definição. Elas dividem o mundo em fiéis e infiéis, santos e pecadores, justos e ímpios, salvos e perdidos. Quem vê isso de fora detesta, quem vê isso de dentro acha tão natural que nem percebe isso como uma discriminação. A propósito, discriminar é fazer diferença, distinguir, separar, discernir (vejam http://aulete.uol.com.br/site.php?mdl=aulete_digital&op=loadVerbete&pesquisa=1&palavra=discriminar). Não é necessariamente um ato de ódio. Por isso uso essa palavra aqui. A discriminação passa a ser reprovável, inclusive pela lei, quando significa que essa diferenciação chega ao ponto de negar direitos com base na diferença pura e simples: não pode trabalhar aqui porque é negro; não pode ser promovida porque é judia; não pode alugar essa casa porque é espírita; não tem direito ao respeito porque é paraguaio. Isso é crime.

No fim das contas, o direito de discriminar, de diferenciar o certo do errado segundo seus critérios, sempre foi e continua sendo usado pelas religiões, que o fazem hoje com enorme liberdade. Para o catolicismo, é pecado divorciar-se; casar de novo, então, é inadmissível: o transgressor sequer tem direito à eucaristia, sendo um adúltero impenitente. Os evangélicos pensam mais ou menos igual, embora muitos vejam brechas para separar e casar de novo que não são admitidas no catolicismo. De um modo ou de outro, o mundo pulula de adúlteros, e eles sofrem sanções eclesiásticas importantes quando são membros de uma comunidade religiosa cristã. Ninguém questiona o direito dessas religiões discriminarem as pessoas conforme sua adesão ou não a seus padrões morais.

Continuando os exemplos, para as testemunhas de Jeová, doar ou receber sangue é pecado muito grave, passível de desassociação, que é como chamam a excomunhão entre eles. Comemorar aniversário também. Para os adventistas do sétimo dia, trabalhar no sábado é motivo para disciplina eclesiástica: o (in)fiel fica sem direito a voz ou a voto na igreja; a transgressão reiterada leva à final exclusão do rol de membros. Vale o mesmo pra quem bebe, por exemplo. Não se concebe um evangélico que participe de sessões espíritas ou que encomende um trabalho num terreiro de candomblé. A pessoa que incorre em tão flagrante negação de sua fé em geral será excluída da comunhão plena da igreja. Dá-se o mesmo com quem assume, aceita, vive e defende sua condição de homossexual. Não conheço casos de questionamentos legais quanto a essas práticas “discriminatórias”. E suponho que, se ocorreram, não encontraram amparo na justiça, porque o direito de dizer o que é certo ou errado numa dada religião não cabe ao Estado.

No entanto, há uma enorme diferença entre distinguir, segundo critérios próprios, o certo do errado, os fiéis dos infiéis, os convertidos dos perdidos, e adotar uma postura de agressão, desrespeito, humilhação e perseguição aos que são considerados “pecadores”. Se o primeiro caso é, no máximo, questionável, pois cada um tem direito a sua própria opinião sobre questões de conduta, o segundo caso é totalmente condenável. E essa é a razão pela qual acho que evangélicos, católicos e quaisquer outros religiosos deveriam ser defensores e não detratores de esforços para criminalizar o racismo, a discriminação religiosa, sexual, de gênero, de etnia e também de orientação sexual. Ou seja, deveriam estar entre os que desejam tornar a homofobia um crime!

Como não quero cansar (ainda mais) o pobre leitor deste blog, deixo para mais tarde o desdobramento desta minha conclusão.

sábado, 6 de agosto de 2011

Casamento ou união civil?

Reproduzo aqui o primeiro comentário ao meu último post:
LG disse...
Muito interessante a ideia do texto.
Só saliento que união civil entre pessoas do mesmo sexo é diferente de casamento gay. Apenas um casal que obteve a união civil recentemente conseguiu convertê-la em casamento.
1 de agosto de 2011 11:31
Como eu disse, é fácil demonstrar ignorância num assunto com tantos detalhes. Já que não sou entendido em direito, é natural juntar no mesmo balaio situações cujas diferenças são sutis para um leigo. E nesse caso, eu tive o prazer de ouvir de LG em pessoa quais as diferenças em questão. Melhor ainda, aprendi que provavelmente não há no Brasil lugar melhor pra entender o assunto do que o endereço http://www.mariaberenicedias.com.br/pt/home.dept. Deem uma olhada, vocês não vão se arrepender.
De todo modo, a meu ver, as sutilezas jurídicas não interferem na essência do que foi dito. Até porque o próprio fato de existir a figura da união civil decorre da quase total impossibilidade (só um caso?!) de um casal homoafetivo conseguir se casar. Até lembro de um defensor dessa causa dizer uma vez algo mais ou menos assim: “Se não querem que a gente case, tudo bem, só queremos os mesmos direitos. Podem chamar de união civil, de união de fato, do que quiserem”. Na discussão, o problema era que os “defensores da família” não admitiam que a palavra “casamento” fosse usada para um coisa tão “imoral”.
Por hoje é só. Até a próxima.

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