quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

O trigo nosso de cada dia – e suas lições


Em dois artigos anteriores1, tratei do antagonismo, sustentado pelo senso comum, entre o natural e o artificial. Deixei no ar a pergunta: o potencial de dano à natureza, por parte de um artefato ou procedimento, seria diretamente proporcional ao grau de artificialidade envolvido no mesmo?

Tomemos como exemplo o alimento mais consumido pelos seres humanos: o trigo, cuja farinha é usada no preparo de inúmeros tipos de comida. Refinada, essa farinha perde muitos de seus nutrientes, além de se tornar mais indigesta. Está aqui uma forma muito simples de artificialidade, conhecida há milênios, que nada tem de sofisticada. Não envolve engenharia química ou genética, transgenia nem física nuclear. Mesmo assim, é reconhecidamente danosa para a saúde humana. Não é à toa que profissionais de saúde recomendam, a quem quer ter uma vida saudável, trocar a farinha refinada pela integral.

Por que uma coisa tão básica – o peneiramento de uma farinha para remover farelo e germe nela incluídos – é capaz de resultar num prejuízo nutricional tão grande? Porque a adequação do trigo à alimentação humana é o resultado de um delicado equilíbrio construído ao longo de toda a história evolutiva das duas espécies, uma história que tem milhões de anos – bilhões, se contarmos o período pré-cambriano da vida2. É muito difícil alterar qualquer dos elementos dessa relação interespecífica sem quebrar esse equilíbrio. Num certo sentido, as adaptações por que humanos e trigo passaram para se adequar tão bem um ao outro embutem uma forma de conhecimento que não pode ser adquirido de modo trivial, o que torna muito improvável melhorar essa relação num golpe de sorte. Isso porque somos – os seres vivos – uma espécie de laboratório em permanente experimentação, numa sinergia que envolve inúmeros ciclos de tentativa e erro ao longo de milhões de gerações. As experiências infelizes são descartadas via seleção natural. As bem-sucedidas permanecem pela transmissão do sucesso genético à descendência de cada espécie. Não dá pra competir com o conhecimento acumulado por esse laboratório sem primeiro entender os detalhes de seu funcionamento. Daí muitas de nossas intervenções resultarem em prejuízos, quando não em desastres.

Seria o caso de jogar a toalha e reconhecer que não há como melhorar a natureza? Que qualquer “mexidinha” vai quebrar o delicado cristal que nos foi legado? Talvez, se acreditarmos que a natureza é perfeita e que o perfeito só pode ser mudado para pior. Mas não é o caso. Por exemplo, um pequeno percentual de seres humanos é geneticamente – leia-se naturalmenteintolerante ao glúten contido no trigo e em cereais aparentados. A essa intolerância dá-se o nome de doença celíaca, que tanto pode ser assintomática como, no extremo, causar câncer. Essas pessoas têm de passar longe do trigo e de qualquer outra fonte de glúten. Nossa adaptação ao trigo não é perfeita. Simplesmente porque a natureza não o é, pelo menos não no sentido de que faz tudo da melhor forma possível para nós, humanos3.

A natureza nos desafia com inúmeros perigos, na forma de doenças congênitas, epidemias, intempéries, hecatombes e ameaças globais de extinção. É ingenuidade supor que somos os queridinhos dela e que para não ter problemas basta sermos bem comportados. E que todo nosso infortúnio, especialmente no âmbito da saúde, se deve a alguma “malcriação” da nossa parte4. As coisas não funcionam assim. A mesma genética que faz alguns de nós intolerantes ao glúten nos dá nossa cota de daltônicos, anêmicos falciformes, intolerantes à lactose, diabéticos tipo 1, leucêmicos infantis e outros “naturalmente” desafortunados. Ratos causam doenças contagiosas e mortais, gafanhotos podem arrasar plantações inteiras, furacões podem destruir cidades. Tudo isso desde muito antes de o homem ser capaz de causar em larga escala qualquer desequilíbrio ambiental ou, especificamente, climático. Que ação humana pode ser responsável pela explosão de Krakatoa ou pelo grande tsunami de 2004? Quem de nós será culpado por uma eventual queda de asteroide capaz de varrer a humanidade da face da terra?

Esses exemplos extremos revelam que nem sempre a salvação vem da adesão estrita aos processos naturais. Pelo contrário, muitas vezes só é possível escapar subvertendo a natureza e recorrendo ao que só nós, humanos, somos capazes de fazer. Nem sempre somos os vilões da história. Munidos do conhecimento devido, ainda podemos sair como heróis.

Respondendo à pergunta que fechou o primeiro parágrafo, podemos concluir que o problema de interferir na natureza não está na intensidade dessa interferência, mas no grau de (des)conhecimento que temos em relação ao processo natural em que interferimos. Os detalhes disso ainda rendem outro artigo.


2 Estou contando aqui adaptações que precedem o consumo direto de trigo por humanos, iniciado há uns 11.500 anos.

3 Uma parcela de meus leitores, criacionistas que são, talvez fique um tanto chocada com minhas afirmações. Mas a imperfeição da natureza é reconhecida até na Bíblia. Um exemplo dessa constatação está em Romanos 8:20 a 22.

4 Permitam-me mais um exemplo bíblico: os discípulos achavam exatamente isso, mas Jesus lhes corrigiu o equívoco. João 9:1 a 3.

sábado, 17 de dezembro de 2011

A omissão a serviço da mentira

Dá pra ver que eu não tenho muito tempo pra escrever. Na verdade, tenho pouco tempo pra ler também, mas tento não me desligar dos assuntos em pauta no mundo pensante. Muito raramente, resolvo me manifestar. Há uma semana, resolvi me pronunciar sobre um post de Reinaldo Azevedo em seu blog, mantido pela revista Veja. Sim, meu texto é contundente, mas ninguém que tenha lido Reinaldo Azevedo pode me acusar de ser mais agressivo do que ele costuma ser. Espero até hoje. Meu comentário não foi publicado. O que não me surpreende, dado o histórico de censura despudorada que o tal blogueiro chama de "moderação". Ele sempre se gaba de não deixar "petralhas" sujar o blog dele. Mas acho que estou em boa companhia. Dias antes do meu comentário ser escrito, eu li um texto revelador do jornalista Phellipe Marcel da Silva Esteves. Sugiro a leitura a todos que imaginam haver alguma honestidade no modo como esses blogs da grande imprensa são conduzidos. Ou mesmo àqueles que gostam de ver suas suspeitas, ou mesmo convicções, confirmadas. Segue abaixo o meu (longo) comentário. Faço uma ressalva ao meu elogio a Augusto Nunes: vi hoje que ele também pode ser muito deselegante com os comentaristas que não se alinham com ele.

Caro Reinaldo Azevedo,

Não concordo com sua autodefesa. Via de regra, seus textos são agressivos, mal-educados, grosseiros, estúpidos mesmo. Não, eu não vou me dar ao trabalho de apontar onde, quando e como se dá isso. Já é muito o tempo que lhe dedico nesse
[errata: "neste"] comentário. Além do mais, não me cabe ensinar a um homem feito, tão seguro de si, detalhes de como se comportar no embate de ideias. E não adianta recorrer a sua tão cara retórica de dizer que de nada vale o que escrevo porque não exemplifico, não "provo" o que estou afirmando. Qualquer pessoa decente é capaz de ponderar sobre uma crítica, ainda que genérica, acerca do seu modo de agir. Pondere. E não apele para o desprezo ou a desqualificação do interlocutor só porque ele não se dispõe a cumprir seus "requisitos" para criticá-lo. Isso é muita soberba.

Se me permite a sugestão, que tal trocar umas ideias com seu amigo Augusto Nunes? Ele é contundente no combate à mediocridade,  vigarice, corrupção e falta de pudores com que o PT e seus asseclas nos têm massacrado nesses longos e tristes nove anos. Mas ele jamais perde a elegância, ao contrário de você, que, de tão deselegante, repetidas vezes me faz sentir vergonha alheia. Você recorre a gabolices, notadamente quando se jacta de brandir a lógica com destreza insuperável. Meu caro profissional das palavras, se lógica bastasse, a filosofia teria se esgotado em Platão ou, no máximo, Aristóteles. E eu já vi você recorrer a silogismos tão ridículos que me soaram desonestos.

Ah, não posso esquecer: é muita grosseria sua barrar qualquer comentário que defenda a legalização das drogas (baseio-me em suas próprias afirmações, já que quase nunca leio os comentários a seus textos). Muitas pessoas inteligentes, honestas, decentes e "limpas" defendem essa legalização em maior ou menor grau. Não é certo barrar a opinião delas apenas porque contrariam sua retórica "infalível". Dê uma olhada no blog do Sakamoto, por exemplo (http://blogdosakamoto.uol.com.br/). Muitos dos leitores dele massacram sem pena o que ele escreve. E nem por isso são barrados. O português dele não é impecável como o seu, as ideias dele não têm o peso da revelação divina que as suas têm, mas ele tem muito mais espírito democrático que você, a despeito de toda a sua pretensa defesa da democracia. Eu sei que o blog é seu, que você faz dele o que quiser, mas o próprio fato de ser um blog tão acessado faz dele um espaço público para o confronto de ideias. Sua "censura" ao que não condiz com suas convicções é um desrespeito ao público, para quem você abriu esse espaço (ou você acha que isso não tem ônus?), inclusive porque introduz um viés de aparente uniformidade onde há de fato uma considerável discordância "reprimida". Mais uma vez, isso não soa honesto.

Não estou aqui fazendo apologia às drogas, muito menos ao crime. Apenas acho que a legalização não é uma ideia que possa ser descartada a priori. Tem de ser pensada, exposta e submetida à critica como qualquer outra proposta honesta de solução. A propósito, jamais usei qualquer tipo de droga e tenho nojo de todas elas, inclusive das drogas "legais" que já vi você saborear em seus vídeos autopromocionais.

Por fim, saiba que não escrevo estas linhas nem leio seu blog por "Reinaldo-dependência" (outra expressão nascida de sua pouca modéstia). Meu comentário tem por alvo muito mais os seus leitores do que você. Quero que eles saibam que existem seres educados e não "esquerdopatas" capazes de discordar de suas verdades. Tenha a decência de publicar minhas palavras. Quanto a lê-lo, saiba que eu sempre dediquei algum tempo a ler, escutar e assistir gente que pensa diferente de mim, inclusive aqueles cujas ideias muitas vezes me soam repulsivas. Isso nunca me empobreceu, pelo contrário. Eu apenas não tenho medo de pôr minhas concepções à prova.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Emergindo...

Depois de muitas semanas, estou (mais ou menos) de volta. O que parecia ser um pequeno contratempo revelou-se um obstáculo intransponível. Tive de contornar. De fato, ainda não terminei. Mas, espero, em breve vocês poderão ler novos textos neste blog.

sábado, 10 de setembro de 2011

A natureza contra a arte? (parte 2)

Depois de tentar reabilitar a “reputação” da artificialidade, pretendo esticar a corda mais um pouco. Começarei por dizer que a dicotomia entre natural e artificial é – hã... – artificial. Sim, por estranho que pareça, esta é a realidade, o que eu espero deixar claro no decorrer deste texto.
Permitam-me começar com uma comparação. Achamos “natural” ver formigas transitando e transportando comida ou outros itens em verdadeiras estradas abertas no mato por elas mesmas. Nossas rodovias, no entanto, são vistas como coisas estranhas à natureza, quando a única diferença está no tamanho, na tecnologia usada, e no grau de impacto ambiental. Este último, aliás, as formigas também causam. Assim como os castores, que derrubam árvores e constroem diques em rios para garantir alimento e segurança. Nada muito diferente do motivo que nos leva a construir enormes e impactantes represas. Se uma raça extraterrestre, tão avançada que fôssemos para ela como formigas são para nós, pousasse por aqui, não veria nada de especial em nossas realizações. Estas seriam vistas como resultado natural da atividade de abundantes bichinhos bípedes que fervilham na superfície deste planeta. Seríamos vistos apenas como parte integrante da natureza, como de fato somos. Só o chovinismo impede que muitos de nós enxerguem isso.
De tais considerações decorre que, se artificial é tudo que foi feito pelo ser humano, e o ser humano é inescapavelmente parte da natureza, ora, tudo que o ser humano faz também o é, sendo, portanto, natural. No fim das contas, “artificial” não é uma categoria à parte de “natural”, menos ainda uma categoria antagônica a esta. Trata-se de uma subcategoria. Embora nem tudo que é natural seja artificial, tudo que é artificial é necessariamente natural1. É um raciocínio aristotélico.
Fora o possível prazer de alcançá-la – pensar é (quase) sempre agradável –, que importância tem essa conclusão? Bem, muita gente é incentivada a considerar tudo que o ser humano produz uma espécie de degeneração, de corrupção daquilo que a sábia natureza nos proporcionou. Creio que a conclusão acima permite-nos avaliar mais positivamente aquilo que nós fazemos.
Afinal, se pensarmos um pouco melhor, veremos que uma vida totalmente “natural” é impossível ou, no mínimo, inviável. Teríamos de viver como macacos, coletando frutos e raízes, sem roupas, abrigados em árvores ou cavernas, porque tudo que passa disso requer algum grau de artificialidade. Até a narrativa bíblica da criação diz que “Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo”2. Ora, se até o paraíso perfeito, recém-saído das mãos do próprio Criador, requeria cultivo, que dizer dos recursos “naturais” de que dispomos hoje? Agricultura, por definição é uma atividade humana, de transformação da natureza, portanto, uma artificialidade. E é muito mais eficiente em nos prover alimentos do que o simples extrativismo. A propósito, as formigas também praticam “agricultura”, cultivando fungos, e “pecuária”, criando e “ordenhando” pulgões para extrair deles uma secreção rica em nutrientes. O que apenas reforça a identidade do que fazemos com tudo mais que se faz no mundo “natural”. Continuando, só usamos roupas porque “subvertemos” a natureza, extraindo pelos de animais ou fibras de plantas e produzindo com eles os tecidos de que nos servimos para abrigo do frio e de outras agressões da – adivinhem – natureza. Esta, de si mesma, jamais nos traria pronta essa proteção. O mesmo se pode dizer de nossas construções. Estaríamos muito mais vulneráveis se nos contentássemos apenas com as árvores e cavernas intocadas.
Por óbvio que pareça o raciocínio acima, ele é passado por alto sempre que alguém imagina que nossa vida seria muito melhor se só aquilo que é “natural” fosse usado para comer, beber, tomar como remédio ou adotar como tratamento. Levado ao limite, esse modelo de vida revela-se insustentável. Só como exemplo, não se cozinha feijão apenas por conveniência. Feijão não cozido é tóxico. E que dizer da mandioca? É mortal, a menos que sua toxina seja eliminada por um procedimento bem conhecido desde os indígenas. São apenas dois exemplos em que o produto “artificial”, ou seja, depois de passar por um processamento que só humanos podem fazer, é melhor que o “natural”. Mesmo um crudívoro terá de tomar alguma providência antes de usar esses alimentos in natura, tornando-os, em algum grau, artificiais.
No fim das contas, quase tudo que extraímos da natureza tem de ser transformado de alguma forma para que possamos usá-lo. E é nessa transformação que introduzimos a artificialidade. Isso não implica que o artefato oriundo desse processo evadiu-se da natureza, tornando-se coisa estranha à mesma, ou que se tenha degradado e renegado sua origem. Trata-se de natureza transformada, mas ainda natureza. Como nós.
Certamente, enxergar numa coisa artificial apenas um tipo específico de coisa natural, não o seu contrário, não nega que há uma enorme diferença entre plantar milho, construir uma casa ou confeccionar uma roupa e produzir um adoçante a partir do petróleo, transformar corantes têxteis em antibióticos ou submeter uma pessoa à quimioterapia na esperança de que esta mate o câncer antes de matar o paciente. Seria o caso de imaginar que pouca artificialidade é aceitável e que o problema começa quando ela vai longe demais? Até onde vejo, não mora aí a raiz do problema. Mas isso é assunto pra outro post. Até lá.


1 Em computação, diríamos que “artificial” é uma subclasse de “natural”.
2 Gênesis 2:15.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Analfabeto ou doutor?

As duas últimas semanas foram marcadas, no mundo do futebol, pela notícia do internamento de Sócrates, o “Doutor” Sócrates, na UTI do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Revelou-se depois que tudo era consequência tardia de nada menos que alcoolismo, a despeito de uma abstinência que já duraria três meses, segundo o próprio ex-jogador em entrevista concedida após sua alta. No momento em que escrevo estas linhas, ele está de volta à UTI, em estado grave.
O caso é emblemático pra mim, porque traz à tona um pensamento que tenho nutrido há muitos anos, e que nasceu de ouvir a inusitada afirmação de um então colega de trabalho que, diante de um papel com anotações manuscritas quase ilegíveis, sapecou: “Quem escreveu isto aqui, das duas uma: era analfabeto ou doutor”. Não sei se a frase era original ou não, mas era a primeira vez que eu a ouvia. Achei divertida e genial. Afinal, quem nunca se revoltou ao tentar decifrar uma receita médica em que o “doutor” caprichou para que ninguém a lesse? Sim, mas o que isso tem a ver com o “Doutor” Sócrates, fora o fato de ser ele médico formado? Eu chego lá.
Voltando à tirada de meu ex-colega, se pararmos pra pensar, é muito curioso que os dois extremos da escala de instrução formal tenham em comum exatamente a incapacidade de se comunicar por escrito. Mas há algo bem além da mera curiosidade nesse fato. Posso estar equivocado, e terei prazer em ser corrigido por quem conhecer mais do assunto, mas desde que ouvi essa inesperada equiparação, não consigo me livrar da sensação de que existe algo deplorável por trás dela. Se numa ponta está um (semi)analfabeto, incapaz de escrever de modo legível porque não aprendeu a fazê-lo, na outra está uma pessoa que alcançou tão alto patamar na formação acadêmica que se acha isenta da obrigação de se fazer entender. Pior: escrever o que ninguém pode ler é sinal de status. Confirma sua posição acima e além dos meros mortais. A estes resta se conformar com sua mediocridade e obedecer ao ditame social que os obriga a escrever de modo inteligível.
Curiosamente, também há alguns anos, vi anunciado o resultado de uma pesquisa na qual se concluía que o percentual de pessoas dependentes do cigarro era bem maior nas camadas menos instruídas da população. Eu teria de ir atrás de mais dados, e confesso que estou sem tempo agora, mas arrisco dizer que mais ou menos a mesma coisa acontece em relação ao abuso de bebidas alcoólicas. Trata-se de outra notícia que faz pensar: porque as pessoas mais instruídas preferem não fumar? Ou não beber, pelo menos não ao ponto de se tornarem dependentes? Obviamente, o acesso à informação (que faz o indivíduo pensar duas vezes antes de se meter numa roubada crônica) e o melhor nível de renda (que cria mais opções de autossatisfação) têm um importante papel na formação desse perfil mais saudável dos mais instruídos. Mas tem uma coisa que essa pesquisa parece ter deixado de fora. Os “mais instruídos” que a média. Não falo aqui de médicos, nem de bacharéis ou mesmo de doutores do mundo acadêmico. Falo de uma classe especial, acima até destas últimas: os intelectuais.
Sim, eu fico impressionado com a popularidade do cigarro e da bebida entre os intelectuais, especialmente aqueles que parecem achar que vão transformar – melhor, salvar – o mundo a partir de suas mesas de bar. Perdão, é preciso fazer um reparo: bar é coisa de gente sem nível, sem instrução, sem dinheiro, sem classe. Intelectual frequenta barzinho. E não é desregrado, é boêmio. Não é dependente nem viciado: usa drogas, nem sempre lícitas, como forma de usufruir da vida sem as limitações caretas da burguesia hipnotizada pelo discurso bom-moço da mídia pasteurizada. É marca registrada da “intelectualidade” não se negar esses gratificantes prazeres.
Quando Carlos Heitor Cony se insurge contra as campanhas antitabagistas alegando que são crias do puritanismo norte-americano; quando João Ubaldo Ribeiro, em plena luta contra o alcoolismo, ridiculariza a busca frenética pela qualidade de vida à custa de não beber, não fumar, não perder noite; quando Gilberto Gil chama de “alteradores de consciência”, coadjuvantes da atividade criativa, as drogas de sua juventude tropicalista, quem vai se contrapor a dois imortais da ABL e a um ex-Ministro da Cultura? Eu não consigo evitar o paralelo com a (falta de) caligrafia: o cara que bebe e fuma ou é um ignorante ou um intelectual, com a diferença de que na primeira hipótese esses “hábitos” são vício; na segunda, são virtude. No meio, estão os (semi)abstêmios, eufemismo para medíocres. Os que habitam o topo dessa “hierarquia” parecem se achar isentos do alto imposto que cigarro (ou suas variantes: charuto, cachimbo, etc.) e bebida cobram na forma de câncer, cirrose, enfisema, AVC... Parece que esse preço só vai ser pago pela plebe ignara, da qual não fazem parte. Não consigo deixar de ver nessa atitude a mesma empáfia de um “doutor” que avia receitas em hieroglifos maias.
Cumprindo minha promessa, volto ao “Doutor” Sócrates. Além de “doutor”, ele é sabidamente um intelectual, fundador da Democracia Corintiana, um cara de raciocínio acima da média, politizado, bom de papo, tudo que um grande pensador pode ser. E um alcoólatra. O triste disso tudo é sua dependência do álcool não é novidade nenhuma, mas nunca foi considerada como tal. A mídia jamais mencionou isso, embora qualquer observador atento pudesse perceber. Ocorre que Sócrates não era um bebum de quinta categoria. Era o “Doutor”: médico, craque, “filósofo”... e bom de copo, claro. Tinha todas as credenciais de um verdadeiro intelectual. Não passava pela cabeça de seus “amigos” e bajuladores dizer que ele era um viciado. Aliás, que palavra mais feia pra se referir a uma pessoa de sua estirpe. Agora, talvez apenas um transplante de fígado o salve. Bem que algum desses “amigos” poderia se habilitar.
Quanto ao ser humano Sócrates, longe de mim torcer contra ele. Eu, que o vi jogar maravilhosamente, que o ouvi falar com tanta inteligência, só posso desejar-lhe o melhor. E melhoras.

domingo, 28 de agosto de 2011

Quando a civilidade é só para os idiotas

Cena 1

Depois de esperar pacientemente minha vez de passar num cruzamento com semáforo, tive de tirar o pé pra não esbarrar com um motociclista que, sem a menor cerimônia, achou que o sinal vermelho pra ele lhe dava muito mais direito de passar do que o verde pra mim. Pior, antes de cruzar comigo, ele ultrapassou rapidamente vários carros já parados por conta do mesmo sinal vermelho. Não pude deixar de me lembrar que, na minha cidade, a maioria absoluta dos motoristas acha absurdo que um semáforo tenha fotossensor para multar os que avançam o sinal. No momento, nenhum semáforo o tem, porque o contrato da prefeitura com a empresa que administrava os equipamentos de fiscalização eletrônica foi rescindido devido a irregularidades cometidas por essa empresa em outros Estados. Jornalistas engrossam o coro dos que querem o fim dos fotossensores e radares. Políticos fazem disso sua plataforma de campanha eleitoral. E são eleitos. Pra mim, essa gente toda não passa de uma canalha.

Cena 2

No estacionamento do shopping, vejo uma mulher guardando as compras no porta-malas do carro. Sua filha, em pé dentro do carrinho de compras, pega dois sacos plásticos de acomodar frutas ou verduras, não usados, e joga no chão do estacionamento. A mãe faz vista grossa. Enquanto eu cato as coisas de que vou precisar para sair do carro e fazer minhas compras, assisto essa cena e fico indignado. A mulher empurra o carrinho pro lado, acomoda a filha no banco de trás e ignora os sacos plásticos largados no chão. Entra, liga o carro e vai sair. Eu já estou farto de ver cenas desse tipo. Antes que ela saia, pego calmamente os sacos no chão, percorro a lateral direita do carro e prendo os dois sacos na palheta do limpador de para-brisa. Ela demonstra surpresa e eu digo em um tom capaz de atravessar os vidros fechados: “Você esqueceu de recolhê-los”. Ela tenta se explicar: “Eles 'caíram' do carrinho...”. Eu não perco a calma, mas minha paciência se esgota. Abandono o papel de quem acredita que ela “esqueceu”. Respondo: “É, mas não lhe custava tê-los pegado”. Acho que ela fica chateada. Parece-me que ela desprendeu o cinto e saiu do carro para recolher os plásticos. Espero que o tenha feito porque eu não tinha interesse de ficar pra ver. Dei as costas e fui embora.
A essa altura, meus pensamentos eram mais ou menos esses: a classe média é a escória da nossa sociedade. Não dispõe sequer da desculpa de não ter tido oportunidade, de não ter estudado, de não ter dinheiro, de não ter instrução. Age desse modo por grosseria pura e simples, travestida de indolente desleixo. Nesse comportamento está a raiz de vivermos num dos países mais injustos, corruptos e desumanos do mundo. Ah, mas eles vão ouvir. De mim, vão.

Diário nada secreto

Nos primórdios do tempo, a palavra blog era uma abreviação de web log, ou seja, um diário na Rede, pra todo mundo ler, ao contrário daqueles diários escritos em cadernos com pequenas fechaduras, redigidos apenas para os olhos de seus autores. Os jornalistas se apossaram da ideia, e hoje blog geralmente é uma coisa bem diferente do conceito original.
Bem, nunca foi minha intenção praticar evasão de privacidade, mas me atrai ter a opção de partilhar algumas experiências do meu dia a dia, principalmente quando elas embutem algo de interesse público. Ou pelo menos do que eu acho ser de interesse público.
Eu até poderia me valer das redes sociais pra isso. Mas não seria suficiente. O que tenho a dizer não diz respeito apenas a meus “amigos” e “seguidores”. Minha intenção é que qualquer ser humano que esbarre nestas páginas tenha a sua disposição minhas impressões acerca do que, tendo acontecido comigo, talvez seja do seu interesse.
Então, está combinado. Eventualmente, intercalarei meus textos “impessoais” com relatos pessoais típicos de um diário. É claro, esses relatos provavelmente virão acompanhados de opiniões acerca do sentido deles para a coletividade.
Começo no próximo post.

sábado, 27 de agosto de 2011

A natureza contra a arte? (parte 1)

Não é de hoje que o senso comum ensina ter a natureza uma sabedoria muito superior quando comparada às nossas pífias artificialidades. Faz todo o sentido. Afinal, quem somos nós para nos julgarmos melhores que a natureza? Mas eu tenho um prazer especial em desafiar o senso comum. Não posso perder uma oportunidade como essa.
Pra começo de conversa, o que significa a palavra “artificial”? Como toda palavra, esta tem vários significados, mas vamos ao primitivo. Os demais nasceram por derivação. Artificial é tudo que se produz “por arte ou indústria do homem e não por causas naturais”1. Colocando de uma forma mais etimológica, artificial é o que se faz com arte, e arte só um ser humano faz. Resta saber o que é arte. Esta palavra nos evoca imediatamente obras de pintura, escultura, arquitetura, música, teatro, cinema, etc. Mas esse sentido também é derivado. Primitivamente, arte é tradução da palavra grega τέχνη (téchne), ou técnica, que “é o procedimento ou o conjunto de procedimentos que têm como objetivo obter um determinado resultado”2. O que nós comumente pensamos como arte tem esse nome porque todo trabalho dito artístico requer o uso de uma técnica para que seja realizado3. Produzir tijolos a partir do barro requer técnica. Pintar a Capela Cistina também. O tempo e os propósitos se encarregaram de distinguir uma forma de técnica/arte da outra. Mas é dessa identidade primitiva entre técnica e arte que nasceu o conceito de artefato, o que se fez com arte, o que é artificial.
Essa pequena investigação nos permite enxergar em tudo o que é artificial o resultado de algum procedimento, simples ou complexo. Ora, não é possível executar um procedimento sem ter o conhecimento de como executá-lo. Portanto, toda artificialidade é fruto da aplicação do conhecimento para algum fim prático. E o conhecimento é inevitavelmente cumulativo. Um saber se agrega a outro, gerando novo saber, que origina nova técnica, que gera novos artefatos. É quase um moto-contínuo. Se há algo de belo na aventura de ser humano, eu vejo parte dessa beleza em nossa capacidade de criar soluções para nossos problemas a partir do conhecimento que acumulamos. E se estamos falando de beleza, vejo aqui reconciliados técnica e arte, esta última entendida como uma atividade que cultiva o belo, ou, como diria Platão, o Bem.
Espero que o compartilhamento desse meu – como direi? – fascínio permita antever um caminho capaz de reabilitar a nobreza perdida da ideia de “feito pelo homem”. Há muita arte nas coisas artificiais.
3 “Portanto, a técnica confundia-se com a arte, tendo sido separada desta ao longo dos tempos”. IDEM.

domingo, 21 de agosto de 2011

O outdoor da discórdia

Eu realmente espero poder dedicar este blog a outros assuntos, mas este não quer esfriar. Tive ontem a desagradável oportunidade de ler as notas sobre um outdoor em Ribeirão Preto, SP, que a justiça mandou retirar, o que já ocorreu, porque o cartaz teria conteúdo homofóbico. Não consigo deixar de achar equivocada essa decisão. E pra não gastar meus argumentos, sugiro a leitura dos comentários de cada uma das notas acima.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Evangelho e homofobia (parte 3)

Eis um tema que se revelou mais cansativo do que eu imaginava ao iniciá-lo. Mas espero concluir com estas (muitas) linhas. No último texto, defendi que evangélicos, cristãos e religiosos em geral que valorizam o ser humano e prezam a liberdade, inclusive a própria, deveriam estar à frente de e não contra esforços para criminalizar a homofobia. Vejamos se fica claro o porquê.

Nos meus textos sobre esse assunto, tenho insistido em exemplificar o que é considerado “pecado” por várias correntes religiosas. Dentre esses está, para a maioria das denominações cristãs, toda e qualquer forma de homossexualidade. Ocorre que esse “pecado” em especial parece ser alvo de uma indignação impressionante da parte dos religiosos, a ponto de pessoas comentarem em blogs que vítimas, inclusive fatais, de violência homofóbica estão apenas colhendo o que plantaram: o resultado de sua rebelião contra Deus. Citam textos bíblicos do tipo “o salário do pecado é a morte”, “Deus não se deixa escarnecer; porque tudo o que o homem semear, isso também ceifará”, e outros do gênero para, intencionalmente ou não, justificar a violência e até o assassinato. Aliás, mencionar que essa justificativa possa ser feita “sem intenção” até me indigna, porque uma pessoa capaz de argumentar dessa forma não tem o direito de ser inocentada, por suposta ingenuidade, da culpa de incitar, sim, a repetição desse tipo de violência. Certos tipos de ignorância pesam mais contra que a favor de seus portadores.

Nessa luta, evangélicos e católicos dão as mãos para barrar as tentativas de criminalizar a homofobia argumentando que perderão o direito de poupar seus filhos da corrupção gay, ao não poder protestar contra a visão infame de “bigodudos” se beijando em restaurantes, lésbicas andando de mãos dadas nas ruas ou sendo babás de suas filhas, ou à disseminação irrestrita da cultura gay em passeatas, programas de tevê e revistas “mundanas”. Temem a corrupção da sociedade e querem frear essa degradação. Os evangélicos, particularmente, têm uma visão um tanto “israelita” do problema, considerando que não podem ser cúmplices, por ação ou omissão, do pecado que pode atrair a maldição divina sobre toda uma nação conivente. É claro que não faltam textos bíblicos para corroborar essas teses.

Diante de tudo isso, vejo-me obrigado a entrar no terreno “teológico” para ver aonde tal raciocínio nos leva. Vou me deter em dois dos textos preferidos pelos campeões da moral e da fé cristã. O primeiro sequer menciona a homossexualidade, mas assim mesmo é um dos prediletos dos que combatem o “perigo arco-íris”.


Ficarão de fora os cães e os feiticeiros, e os que se prostituem, e os homicidas, e os idólatras, e qualquer que ama e comete a mentira. Apocalipse 22:15
Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus. 1 Coríntios 6:10


É curioso perceber que, para essas pessoas, parece que esses textos só se aplicam, de forma explícita ou velada, à questão homossexual. O que aconteceria se a mesma medida fosse usada para os demais pecados citados? Digo isso porque a Bíblia é contundente ao condenar, não só aqui mas de forma sistemática, todos esses pecados. Todos já foram em algum grau apontados como responsáveis pela derrocada espiritual, moral e até militar do povo de Israel. Mas parece que a comunidade religiosa cristã de nossos dias, tão ocupada que está em combater o “pecado de Sodoma”, esqueceu que por coerência deveria estar combatendo com mesmo vigor os outros pecados mencionados.

O primeiro deles, supondo que ser cão não seja pecado, é ser feiticeiro. Esse é um terreno perigoso, porque no meio evangélico, e, dependendo do grau de “fundamentalismo”, no católico também, essa condenação recai hoje sobre os que praticam o candomblé e até sobre o espiritismo, além de outras praticas religiosas animistas, xamânicas ou místicas das mais variadas formas. Por que não vemos evangélicos e católicos clamando pelo fechamento dos terreiros de candomblé e dos centros espíritas? Acaso a “feitiçaria” é um pecado menos grave do que a “sodomia”? Seu poder de corromper suas crianças é menor? Já imaginaram quantas crianças evangélicas são bombardeadas com elogios à cultura afro-brasileira nas escolas, na tevê, na música, no cinema, na literatura? Isso não vai comprometer a educação cristã que recebem em casa? Que tal censurar “Chico Xavier”, “Nosso Lar” ou “As Mães de Chico Xavier”, exibidos no cinema e propagandeados pelas mesmas novelas que dão tanto apoio à causa gay? Vamos banir “Harry Potter” e “O Senhor dos Anéis” das locadoras, da internet e das livrarias! Isso não pode corromper seus filhos?!

Só que tal coisa não é possível. A lei não deixa. Porque nosso país oferece a seus cidadãos liberdade de expressão e de culto, protegendo inclusive os templos, não só católicos e evangélicos, mas também os centros espíritas, os terreiros de candomblé, os pagodes budistas e as rodas do Santo Daime. Agora digam-me: se alguém começar a atacar terreiros, mães e pais de santo e até sócios do Ilê Aiyê, e estes vierem a público requerer a proteção do Estado contra a discriminação religiosa que estão sofrendo, os evangélicos e carismáticos se atreverão a dizer que o problema é deles, que estão colhendo o que semearam, que sobre eles pesa a maldição de Deus até que se convertam? Argumentarão que eles estão buscando privilégios pra continuar tendo a liberdade de disseminar sem embargo sua corrupção espiritual em nossa sociedade? A lógica é rigorosamente a mesma em relação à causa anti-homofóbica.

O segundo pecado citado acima é a prostituição. Que, aliás, não é crime em nosso país. Crime é explorá-la, ou seja, um terceiro ganhar dinheiro com a prostituição alheia. Até hoje as prostitutas são alvo de violência e discriminação. Muitas apanham e morrem apenas por serem prostitutas. Pior, há quem apanhe apenas porque parece ser prostituta. Qualquer semelhança com pai e filho agredidos porque expressaram carinho mútuo e foram confundidos com homossexuais não é mera coincidência. Como deve a comunidade cristã se portar quando associações de prostitutas saem às ruas ou vão à mídia pedir o fim dessa violência moral e física? Azar delas, “o salário do pecado é a morte”? Indo mais longe, a visibilidade delas em lugares onde só “pessoas de família” deveriam circular não se constitui uma influência ainda mais nefasta para nossas inocentes crianças do que a visão dantesca de dois homens se abraçando? Não deviam elas ser banidas da visão das pessoas de bem?

Outro pecado citado é o da idolatria. Ah, esse é um dos meus “preferidos”, porque coloca em campos opostos católicos e evangélicos, já que os últimos consideram idolátrica a veneração católica aos santos e suas imagens, aos símbolos e relíquias sagradas da igreja romana. E aí, quem vai encarar? Cadê os Gideões modernos que não se habilitam a derrubar os altares de Baal que infestam nosso “Israel” contemporâneo? Por que os zelosos evangélicos não tentam evitar que seus filhos sejam expostos à visão de crucifixos em paredes, ruas, monumentos e órgãos públicos? Isso pra não falar dos pescoços de milhares de pessoas nas praças, no comércio, na tevê, no trabalho, nas creches, nas escolas e – pasmem! – alguns desses idólatras são professores dos seus filhos! Vocês leem a Bíblia? Fazem ideia do horror que Deus dedica à idolatria? Vocês têm menos medo de que seus filhos se tornem idólatras do que de vê-los achar que ser homossexual é normal?!

Mas sabem o que aconteceria se, tomados por fervor religioso, alguns se dispusessem a repetir o heroísmo de Gideão? Seriam enquadrados como criminosos, por discriminação religiosa, talvez, e por vilipêndio a objeto de culto religioso, com certeza. Nós vimos algo parecido no gesto do pastor que chutou a santa, muitos anos atrás. Na época, eu vi pessoas da minha igreja de então, sempre bastante crítica à Universal do Reino de Deus, dizerem que ele não tinha errado, que idolatria deveria ser combatida daquela forma mesmo. Na minha opinião, se quisessem ser coerentes, os evangélicos que consideram intolerável ver homossexuais lutarem pelo direito de não ser enxotados de lugares públicos deveriam ter a mesma coragem de combater com veemência a exposição onipresente de imagens católicas, ou mesmo as dos orixás no Dique do Tororó, dispondo-se a derrubá-las em nome do Senhor dos Exércitos, ainda que pra isso tivessem que suportar a prisão, ver o mundo se voltar contra eles e fazer deles os novos mártires da fé, tão admirados no futuro quanto são hoje os que eram jogados aos leões por pregar contra a adoração a César.

Este post não terá fim se eu for falar individualmente dos devassos, dos adúlteros ou dos bêbados. Vamos acabar com o funk carioca; vamos impedir que os MCs Créus apresentem à sociedade as Mulheres Melancias; vamos varrer do mapa as coleguinhas de palco do Luciano Huck; abaixo a minissaia! Ah, e às moças que forem estupradas ao voltar de uma festa à qual foram com roupas provocantes, vamos dizer que “Deus não se deixa escarnecer...”. Vamos permitir, como antigamente acontecia em nossa sociedade brasileira, nos tempos em que prevaleciam a moral e os bons costumes, que mulheres descasadas, adúlteras, mães solteiras ou amasiadas sejam apontadas na rua e, pra não darem mau exemplo, até expulsas de recintos “familiares”. Vamos instituir a lei seca, não no trânsito, mas em tudo; acabar com a propaganda de cerveja; fechar todos os bares. O exemplo americano do início do século passado foi tão bem sucedido, por que não imitá-lo? Vocês têm menos medo de que seus filhos sejam expostos a toda essa imoralidade do que de saber que o professor deles é gay? Uma filha alcoólatra dá menos desgosto ao pai do que uma lésbica?

Estes últimos exemplos mostram que, para o bem ou para o mal, a sociedade não aceitaria a tutela religiosa nesses casos. Então os religiosos têm de se conformar em saber que o direito de se vestir de modo “indecente”, de ser sexualmente “devasso”, de adulterar, de se separar, de fazer sexo sem casar, de ajuntar-se, é uma escolha pessoal que só diz respeito a quem a faz. Se terceiros se sentem incomodados com a possível influência que esses casos podem ter em suas próprias convicções ou nas de seus filhos, cabe a eles munir-se das defesas que acharem apropriadas, mas não lhes cabe o direito de interferir nas escolhas dos que não acreditam no que eles acreditam, menos ainda de ditar onde e quando essas escolhas devem ser exercidas.

Como parêntese, quero lembrar que certos comportamentos ainda são considerados ilegais por ferir aos “bons costumes”. Fazer sexo em praça pública é um deles. Não estou advogando que deixe de ser. Adultério já foi crime e não é mais. Tampouco defendo que volte a ser. Matar uma esposa adúltera em defesa da honra já foi legal. Felizmente não é mais. Eu sei que os valores de uma sociedade são instáveis e que isso, para uma pessoa cuja religião dita verdades “imutáveis”, é difícil de aceitar. Mas o que defendo aqui é que, numa sociedade laica, o direito de uma religião impor às pessoas como elas devem agir limita-se aos que aceitaram essa tutela, ou seja, aos seus fiéis. O que passa disso, permitam-me a paráfrase, “procede do Maligno”.

Vou tentar resumir toda a argumentação dos meus últimos três textos da seguinte forma: evangélicos, católicos, cristãos em geral, têm todo o direito de acreditar que é pecado ser homossexual. Mas assim como nenhum cristão decente pode considerar que um espírita ou pai de santo deveria ser privado do direito de casar e criar filhos porque pratica uma suposta forma de “feitiçaria”, não pode achar que um casal homoafetivo não tem esse direito por praticar “sodomia”. Assim como um católico não pode ser privado do direito de expor em público sua “idolatria”, um homossexual não pode ser privado do direito de expor sua afeição pelo mesmo sexo. Fazer sexo em praça pública é proibido a todos, homossexuais ou não. Abusar crianças também. Mas beijar e abraçar é permitido a heterossexuais em qualquer situação informal; então por que deveria ser proibido a homossexuais? O nome disso é discriminação, e no pior sentido. A Bíblia é feroz na condenação do adultério. Até Jesus, ao proibir o divórcio e chamar de adúlteros os divorciados que voltam a casar com terceiros. Mas uma adúltera protagonizou uma das mais belas cenas da vida de Cristo, que a salvou do apedrejamento. Não é absurdo que dois mil anos depois os cristãos ainda prefiram estar entre os apedrejadores de gays? O pecado de ser “efeminado” merece menos tolerância do que o de ser “adúltero”? Um homossexual tem menos direito de exigir respeito do que uma “mulher descasada”? Se as igrejas, de bom grado ou não, toleram conviver num mundo cheio de pessoas que estão “em pecado” de adultério, mas que não precisam temer o apedrejamento físico ou moral, por que não podem suportar viver num mundo cheio de homossexuais assumidos e livres do mesmo temor? Enfim, considerar pecaminoso um comportamento é um direito inalienável de toda confissão religiosa. Isso em nada impede que essa mesma confissão ensine seus fiéis a ser tolerantes e a se posicionar contra, e não a favor da intolerância.

Afinal, se há uma lição do Evangelho que jamais deveria ser esquecida, é o amor ao próximo. Muitos evangélicos se escondem atrás do argumento de que isso não os obriga a amar o pecado. Afinal, Deus “odeia” o pecado. Eu não quero entrar nas implicações teológicas desses argumentos, mas gostaria de considerar isto: se você acha que seu “ódio” ao pecado justifica revoltar-se com um gay que foi agredido na rua por sua “sem-vergonhice” em vez de revoltar-se com seus agressores; se você acha que exigir o direito de não ser achincalhado moralmente por ser homossexual é abuso; se você acha que exigir uma lei que proteja um travesti dessas formas de agressão é atentar contra seu direito de crença, então você odeia o “pecador”. Toda argumentação em contrário é mera falácia. Quer ser cristão de verdade? Defenda o oprimido, quem quer que seja ele, não o opressor.

sábado, 13 de agosto de 2011

Evangelho e homofobia (parte 2)

Cumprindo o que prometi, trago um novo texto sobre o assunto. Desta vez, quero me deter no tema do projeto de lei que criminaliza a homofobia. Seria muita pretensão da minha parte dizer que tenho repostas para as questões que esse projeto de lei levanta. Mas este blog não tem o nome que tem à toa. Este espaço existe para que assuntos difíceis possam ser pensados, não resolvidos. Não há espaço pra dogma aqui.

Então vamos ao trabalho. Sempre que algum noticiário ou blog abre na internet espaço para comentários sobre o assunto, eu vejo evangélicos, às vezes com muita veemência, expressarem o temor de que serão perseguidos porque não poderão pregar que homossexualismo é pecado; não poderão citar os famosos textos bíblicos que condenam de modo contundente todo desvio da sexualidade considerada “sadia”; não poderão chamar ao arrependimento os pecadores empedernidos que insistem em suas abomináveis práticas homossexuais, pedófilas, zoófilas e afins. Eu não sei que fim vai ter esse projeto de lei, mas preciso deixar claro que eu também me preocupo com a possibilidade de que essas crenças e sua pregação sejam consideradas crimes de homofobia. No primeiro texto meu sobre o tema, defendi minha posição com base no princípio da liberdade religiosa. Invoco aqui esse mesmo princípio para defender que evangélicos, católicos, muçulmanos, judeus e quem mais quiser têm todo o direito de achar que homossexualidade é pecado. E de pregar isso. E mesmo de tentar convencer seus potenciais prosélitos de que precisam acreditar nisso. Negar esse direito é um ato de violência contra a liberdade de expressão, de culto e de crença.

No entanto, isso não significa que eu sou contra tornar crime a homofobia. Não sei como essa equação vai ser resolvida, mas considero, sim, que homofobia deve ter o mesmo tratamento que a lei dá à “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” (Lei nº 7.716, de 5 de Janeiro De 1989, Art. 1º). Racismo é crime. Discriminação religiosa é crime. Xenofobia, se entendo bem o texto da lei, é crime. E o artigo 20 da mesma lei ainda torna crime “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito” dos tipos já mencionados. Aí é que o bicho pega. O próprio ato de pregar a discriminação ou preconceito já é crime. Já vi juristas dizerem que nos Estados Unidos uma lei assim seria inconstitucional, porque a liberdade de expressão, lá, é tão sagrada que você pode disseminar quanto ódio você queira: o crime só vai existir quando o ódio deixar de ser discurso para se tornar prática. Reitero que sou profundamente ignorante quanto ao direito, mas aprendi que nenhum direito é absoluto, e essa é uma das razões pra nossa lei considerar que a liberdade de expressão deve ser tolhida quando usada para disseminar o ódio. É uma questão de pesar o que vale mais: o direito de dizer o que se pensa ou o de não ser alvo de campanhas discriminatórias que fatalmente resultam em vítimas de violência. Acho fácil escolher.

O que acontecerá, então, se essa lei for alterada para tornar crime a homofobia, seja ela efetivamente praticada ou apenas induzida ou incitada? Os religiosos ainda poderão pregar contra a homossexualidade? Depende, claro, de como vai ficar o texto da lei, e eu não sou futurólogo. Depende ainda de como os tribunais vão interpretar o texto da lei. Mas talvez dependa muito mais de como as igrejas e demais agremiações religiosas querem ter o direito de tratar desse assunto. Porque a história mostra que as religiões monoteístas, aí incluídas o cristianismo, o judaísmo e o islamismo, são discriminatórias por definição. Elas dividem o mundo em fiéis e infiéis, santos e pecadores, justos e ímpios, salvos e perdidos. Quem vê isso de fora detesta, quem vê isso de dentro acha tão natural que nem percebe isso como uma discriminação. A propósito, discriminar é fazer diferença, distinguir, separar, discernir (vejam http://aulete.uol.com.br/site.php?mdl=aulete_digital&op=loadVerbete&pesquisa=1&palavra=discriminar). Não é necessariamente um ato de ódio. Por isso uso essa palavra aqui. A discriminação passa a ser reprovável, inclusive pela lei, quando significa que essa diferenciação chega ao ponto de negar direitos com base na diferença pura e simples: não pode trabalhar aqui porque é negro; não pode ser promovida porque é judia; não pode alugar essa casa porque é espírita; não tem direito ao respeito porque é paraguaio. Isso é crime.

No fim das contas, o direito de discriminar, de diferenciar o certo do errado segundo seus critérios, sempre foi e continua sendo usado pelas religiões, que o fazem hoje com enorme liberdade. Para o catolicismo, é pecado divorciar-se; casar de novo, então, é inadmissível: o transgressor sequer tem direito à eucaristia, sendo um adúltero impenitente. Os evangélicos pensam mais ou menos igual, embora muitos vejam brechas para separar e casar de novo que não são admitidas no catolicismo. De um modo ou de outro, o mundo pulula de adúlteros, e eles sofrem sanções eclesiásticas importantes quando são membros de uma comunidade religiosa cristã. Ninguém questiona o direito dessas religiões discriminarem as pessoas conforme sua adesão ou não a seus padrões morais.

Continuando os exemplos, para as testemunhas de Jeová, doar ou receber sangue é pecado muito grave, passível de desassociação, que é como chamam a excomunhão entre eles. Comemorar aniversário também. Para os adventistas do sétimo dia, trabalhar no sábado é motivo para disciplina eclesiástica: o (in)fiel fica sem direito a voz ou a voto na igreja; a transgressão reiterada leva à final exclusão do rol de membros. Vale o mesmo pra quem bebe, por exemplo. Não se concebe um evangélico que participe de sessões espíritas ou que encomende um trabalho num terreiro de candomblé. A pessoa que incorre em tão flagrante negação de sua fé em geral será excluída da comunhão plena da igreja. Dá-se o mesmo com quem assume, aceita, vive e defende sua condição de homossexual. Não conheço casos de questionamentos legais quanto a essas práticas “discriminatórias”. E suponho que, se ocorreram, não encontraram amparo na justiça, porque o direito de dizer o que é certo ou errado numa dada religião não cabe ao Estado.

No entanto, há uma enorme diferença entre distinguir, segundo critérios próprios, o certo do errado, os fiéis dos infiéis, os convertidos dos perdidos, e adotar uma postura de agressão, desrespeito, humilhação e perseguição aos que são considerados “pecadores”. Se o primeiro caso é, no máximo, questionável, pois cada um tem direito a sua própria opinião sobre questões de conduta, o segundo caso é totalmente condenável. E essa é a razão pela qual acho que evangélicos, católicos e quaisquer outros religiosos deveriam ser defensores e não detratores de esforços para criminalizar o racismo, a discriminação religiosa, sexual, de gênero, de etnia e também de orientação sexual. Ou seja, deveriam estar entre os que desejam tornar a homofobia um crime!

Como não quero cansar (ainda mais) o pobre leitor deste blog, deixo para mais tarde o desdobramento desta minha conclusão.

sábado, 6 de agosto de 2011

Casamento ou união civil?

Reproduzo aqui o primeiro comentário ao meu último post:
LG disse...
Muito interessante a ideia do texto.
Só saliento que união civil entre pessoas do mesmo sexo é diferente de casamento gay. Apenas um casal que obteve a união civil recentemente conseguiu convertê-la em casamento.
1 de agosto de 2011 11:31
Como eu disse, é fácil demonstrar ignorância num assunto com tantos detalhes. Já que não sou entendido em direito, é natural juntar no mesmo balaio situações cujas diferenças são sutis para um leigo. E nesse caso, eu tive o prazer de ouvir de LG em pessoa quais as diferenças em questão. Melhor ainda, aprendi que provavelmente não há no Brasil lugar melhor pra entender o assunto do que o endereço http://www.mariaberenicedias.com.br/pt/home.dept. Deem uma olhada, vocês não vão se arrepender.
De todo modo, a meu ver, as sutilezas jurídicas não interferem na essência do que foi dito. Até porque o próprio fato de existir a figura da união civil decorre da quase total impossibilidade (só um caso?!) de um casal homoafetivo conseguir se casar. Até lembro de um defensor dessa causa dizer uma vez algo mais ou menos assim: “Se não querem que a gente case, tudo bem, só queremos os mesmos direitos. Podem chamar de união civil, de união de fato, do que quiserem”. Na discussão, o problema era que os “defensores da família” não admitiam que a palavra “casamento” fosse usada para um coisa tão “imoral”.
Por hoje é só. Até a próxima.

domingo, 31 de julho de 2011

Evangelho e homofobia (parte 1)

Eis um assunto tão problemático que nem sei se devia abordá-lo. Não porque eu tenha medo dele ou o ache tabu, mas por dois motivos: é muito fácil passar por ignorante quando se aborda um tema difícil, vasto e polêmico; e esse tema em particular desperta ódios em muita gente que se mete a discuti-lo. Sou egresso de um meio evangélico, e nesse meio estão os melhores amigos que tenho no mundo. Então eu fico pensado em vários dos amigos que leram o primeiro texto neste blog, que o acharam muito bonitinho e tal, mas que podem não ficar muito satisfeitos com o que vão ler aqui. Paciência, não se pode agradar a todos.

Achei curioso que o primeiro e único comentário ao meu post anterior mencionasse de passagem o problema da homofobia, porque esse era exatamente o assunto seguinte a clamar em minha mente para vir à luz. Um dos motivos desse clamor é que eu me incomodo com o que ouço a respeito dos evangélicos por parte de quem combate a homofobia, ao tempo em que lamento o fato de grande parte dos mesmos evangélicos demonstrarem completo despreparo para viver num mundo laico. Essa discrepância entre visões de mundo é vasta o suficiente pra tornar impossível esgotar o assunto numa única postagem. Podem esperar, que eu volto a essa matéria em outras oportunidades.

Por hoje, eu pretendo me deter na questão da união civil entre pessoas do mesmo sexo, o chamado casamento gay. Pra não deixar dúvidas, afirmo que sou totalmente a favor. Ponto. Cabe então expor porque acho que evangélicos não deveriam ser contra. O motivo é deveras simples: porque os evangélicos, mais do que ninguém, deveriam defender a liberdade religiosa. Sim, o assunto tem tudo a ver com liberdade religiosa, esse direito tão valioso que foi conquistado a duras penas ao longo dos últimos cinco séculos. No rastro do que será dito, espero ficar claro que o mesmo se aplica a católicos, espíritas, macumbeiros ou adeptos de qualquer outra ou nenhuma religião.

O aspecto religioso do problema é óbvio: qual o motivo alegado para que a união entre homossexuais seja proibida, ou, no mínimo, não tenha o mesmo amparo legal de que goza o casamento convencional? Os evangélicos amparam-se sempre na condenação bíblica ao homossexualismo1. Ora, se o caso é esse, trata-se de uma proibição de cunho religioso. Que outro motivo um cristão (afinal, o evangélicos não são os únicos nessa argumentação) pode alegar para ser contra a união homoafetiva? Que argumento legal ele pode trazer à tona? Que a Constituição só considera casal o composto por homem e mulher? Ora, isso pode ser mudado com uma emenda, ou com uma interpretação progressista, como fez o STF recentemente. Resta o quê, então? Alguém me mostre, por favor, porque eu não encontro outra motivação que não seja religiosa2. E se a motivação é religiosa, ela não deve encontrar guarida na lei civil de um Estado laico.

E laico o Estado dever ser. Se não, que princípios religiosos ele deve adotar? Por exemplo, em quase todo o cristianismo, sexo fora do casamento é pecado. Deveria a lei desamparar nos seus direitos civis os adolescentes solteiros que perdem a virgindade, os homens e mulheres adúlteros, os separados, os recasados, os filhos de relações “ilegítimas”? Graças a Deus (perdão se o uso aqui for considerado vão) que isso não acontece mais! Mas já aconteceu, e por força de imposições que no fim das contas eram de origem puramente religiosas.

Um exemplo mais preciso, no mesmo tom: a Igreja Católica condena o divórcio, e lutou muito – em vão – a contra a aprovação da lei que em 1977 liberou o divórcio no Brasil. Hoje, inúmeros evangélicos usufruem dessa lei para se divorciar e até para casar de novo, porque eles acham que têm esse direito em circunstâncias que, para o Vaticano, jamais justificariam um divórcio. Que seria deles se a opinião católica continuasse a valer na lei civil?

E quanto a outras divergências? Existem no meio cristão doutrinas que proíbem a transfusão de sangue, outros não admitem o trabalho aos sábados, a maioria considera o domingo um dia sagrado, há quem não queira ver seus filhos aprendendo que o homem evoluiu do macaco, e pra cada uma dessas ideias existem, só pra mencionar o amplo espectro do cristianismo, os que pensam exatamente o contrário! Qual dessas correntes deveria o Estado adotar em cada caso? E eu nem mencionei os não cristãos: budistas, adeptos do candomblé3, islâmicos, hindus e ateus. Que tal proibir o comércio e o consumo de carne de vaca? Ou de qualquer carne? Ou proibir mulheres de descobrir a cabeça fora de casa? Não cabe ao Estado impor proibições que só interessam aos adeptos desta ou de outra doutrina.

Mais importante ainda, não cabe ao Estado negar sua proteção a quem vive em desacordo com qualquer dessas doutrinas. Por isso, um casal homoafetivo não pode, porque está em desacordo com um preceito religioso, ficar na insegurança jurídica de não poder contar com o amparo que a lei dá a respeito de partilha de bens, herança, deduções de imposto de renda, dependência em planos de saúde públicos ou privados e até no que se refere à guarda e criação de filhos, adotados ou não. Negar esse amparo a um casal homossexual é como negar os direitos legais básicos de que gozam mães solteiras, filhos “ilegítimos”, pessoas descasadas, casais “amasiados”, e todos aqueles que de alguma forma estão fora do que prescreve o “bom comportamento” cristão. Trata-se exatamente da mesma coisa.

E por se tratar da mesma coisa, a união civil entre homossexuais deve ser aprovada pelo Estado, para que esses casais gozem dos mesmíssimos direitos de que gozam os casais que contam com a aprovação de seus respectivos grupos religiosos. Até porque existem correntes no próprio cristianismo que não consideram pecado sentir nem praticar a homossexualidade, inclusive aceitando em seu clero padres e pastores declaradamente homossexuais. Deveria o Estado considerar hereges essas correntes e adotar a visão dos cristãos “ortodoxos”? E que dizer das religiões não cristãs que não condenam a homossexualidade? Deve o Estado considerá-las pagãs e ignorar suas opiniões? O fato de o Brasil ter maioria cristã não dá aos cristãos o direito de dizer como as minorias não cristãs devem viver. E se há um grupo que deveria saber disso são os evangélicos, uma vez que, embora muitos, ainda são minoria, e se não houvesse liberdade religiosa, poderiam muito bem ter várias de suas práticas e crenças ameaçadas pela maioria que ainda é católica, e estar reduzidos hoje a uma minoria ainda... menor.

Resumindo, para que haja liberdade religiosa é preciso que o Estado não se comprometa com nenhuma religião ou corrente religiosa em particular, e isso implica que ele não pode se omitir de proteger como a qualquer outro cidadão aqueles que vivem em desacordo com uma doutrina religiosa, seja ela qual for.

É simples assim. Ou não?


1Os patrulheiros da correção política devem condenar-me pelo uso dessa palavra. Mas vejam http://aulete.uol.com.br/site.php?mdl=aulete_digital&op=loadVerbete&pesquisa=1&palavra=homossexualismo. Ela é sinônimo de “homossexualidade” e eu sempre a usei sem jamais imaginar que houvesse um ranço pejorativo nela. Além do mais, o contexto refere-se a uma visão negativa da homossexualidade, o que torna adequado, a meu ver, o uso de uma palavra que ganhou com o tempo essa conotação considerada ofensiva.

2Na verdade, eu encontro, mas ela é pseudo-não-religiosa. A discutir.

3A bem da verdade, o sincretismo cuidou de tornar o candomblé uma corrente a mais dentro do cristianismo.

domingo, 24 de julho de 2011

Amor e narcisismo

Este blog não poderia começar melhor do que mencionando minha filha. Ela me fez escrever estas linhas. Que já dançavam na minha mente há muito tempo, é verdade. Mas dela veio a motivação para fazer estas palavras rodopiantes marcharem ordenadamente até alcançar a retina de seus eventuais leitores.

Nestes últimos dias, minha filha tem-me feito gestos de carinho tão tocantes que eu não pude deixar de me derreter com eles. Eu a amo desde o primeiro momento em que a peguei nos braços, mas essa recente expansão de seu carinho fez meu amor crescer a um ponto que eu me vejo na iminência de, como descreveu-me uma amiga que conhece bem essa intensidade de sentimento, ver meu coração estourar num “ploc!” de emoção incontível.

Esta situação me fez refletir pela enésima vez sobre a natureza desse amor que sentimos. E essa reflexão sempre me faz perceber que há uma enorme dose de narcisismo na raiz desse amor. Tal relação pode parecer insuspeita ao olhar desatento, mas não tem nada de realmente surpreendente. Dada a natureza essencialmente egocêntrica do ser humano, não há porque estranhar que mesmo nossos mais belos sentimentos tragam em si a marca da egolatria.

Senão vejamos. Que são as outras pessoas para nós além de espelhos nos quais enxergamos nossos próprios reflexos? Mais ou menos distorcida, mais ou menos fiel ao que achamos que somos, nossa imagem está estampada na forma como reage a nós cada pessoa com quem nos relacionamos. Algumas gostam mais de nós do que outras. As que mais nos demonstram apreço costumam despertar em nós sentimentos recíprocos. Gostamos de ser estimados, queridos, amados. E por uma razão bem simples: as pessoas que nos amam, em maior ou menor grau, são espelhos que nos dizem que somos belos, especiais, “amáveis”. Ah, e como gostamos disso! Ficamos extasiados diante de águas plácidas que nos pintam com tamanha beleza.

Por isso o ser amado, ao nos presentear com a reciprocidade, deixa-nos tão gratificados, faz-nos amá-lo ainda mais. Se amamos uma pessoa, é porque enxergamos nela beleza. Enxergamos nela muito do que somos, ou do que gostaríamos de ser, do que nos falta para nos sentirmos belos. Seja por confirmar o que achamos de nós mesmos, seja por preencher as lacunas que nos diminuem, o amor correspondido nos recompensa com a certeza de que, sim, naquele espelho podemos nos contemplar e nos enxergar belos, como sempre quisemos. Nossa autoestima agradece.

Aliás, “autoestima” é a palavra-chave. Ela é nada mais que a estima, o apreço, o valor que damos a nós mesmos. E de que modo podemos nos avaliar se não temos como olhar para o que somos? Pra isso servem os espelhos. Nossa imagem, nossa autoimagem, forma-se em grande medida a partir do outro. Até onde sei, é difícil ter autoestima quando não se é amado. Mas como ela cresce quando alguém que nos é caro nos diz “eu te amo”! E como esse afago em nossa autoestima torna ainda maior o nosso amor!

Não posso então concluir que o narcisismo inerente ao amor seja em si ruim. Mesmo o amor ao próximo como a nós mesmos implica a necessidade do amor-próprio. Se a menção de uma palavra tão feia como “egolatria” prenunciava conclusão oposta, é por pura falta de vocábulo adequado a meu dispor. Também não tenho a pretensão de ter escrito um post à prova de Freud. Apenas desejo compartilhar minhas ruminações sobre o tema, deixando-o aberto a comentários, que serão muito bem-vindos.

É claro que minhas considerações talvez não fossem pertinentes se eu estivesse falando do amor ágape. Mas isso é algo fora do meu alcance no momento, e talvez sempre. Voltando ao motivo deste texto, só posso dizer que, de modo egocêntrico, humano, bem humano, eu amo minha filha de todo o coração. E fico imensamente feliz de ver que ela me ama também. O amor recíproco é uma bola de neve montanha abaixo.

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