sábado, 10 de setembro de 2011

A natureza contra a arte? (parte 2)

Depois de tentar reabilitar a “reputação” da artificialidade, pretendo esticar a corda mais um pouco. Começarei por dizer que a dicotomia entre natural e artificial é – hã... – artificial. Sim, por estranho que pareça, esta é a realidade, o que eu espero deixar claro no decorrer deste texto.
Permitam-me começar com uma comparação. Achamos “natural” ver formigas transitando e transportando comida ou outros itens em verdadeiras estradas abertas no mato por elas mesmas. Nossas rodovias, no entanto, são vistas como coisas estranhas à natureza, quando a única diferença está no tamanho, na tecnologia usada, e no grau de impacto ambiental. Este último, aliás, as formigas também causam. Assim como os castores, que derrubam árvores e constroem diques em rios para garantir alimento e segurança. Nada muito diferente do motivo que nos leva a construir enormes e impactantes represas. Se uma raça extraterrestre, tão avançada que fôssemos para ela como formigas são para nós, pousasse por aqui, não veria nada de especial em nossas realizações. Estas seriam vistas como resultado natural da atividade de abundantes bichinhos bípedes que fervilham na superfície deste planeta. Seríamos vistos apenas como parte integrante da natureza, como de fato somos. Só o chovinismo impede que muitos de nós enxerguem isso.
De tais considerações decorre que, se artificial é tudo que foi feito pelo ser humano, e o ser humano é inescapavelmente parte da natureza, ora, tudo que o ser humano faz também o é, sendo, portanto, natural. No fim das contas, “artificial” não é uma categoria à parte de “natural”, menos ainda uma categoria antagônica a esta. Trata-se de uma subcategoria. Embora nem tudo que é natural seja artificial, tudo que é artificial é necessariamente natural1. É um raciocínio aristotélico.
Fora o possível prazer de alcançá-la – pensar é (quase) sempre agradável –, que importância tem essa conclusão? Bem, muita gente é incentivada a considerar tudo que o ser humano produz uma espécie de degeneração, de corrupção daquilo que a sábia natureza nos proporcionou. Creio que a conclusão acima permite-nos avaliar mais positivamente aquilo que nós fazemos.
Afinal, se pensarmos um pouco melhor, veremos que uma vida totalmente “natural” é impossível ou, no mínimo, inviável. Teríamos de viver como macacos, coletando frutos e raízes, sem roupas, abrigados em árvores ou cavernas, porque tudo que passa disso requer algum grau de artificialidade. Até a narrativa bíblica da criação diz que “Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo”2. Ora, se até o paraíso perfeito, recém-saído das mãos do próprio Criador, requeria cultivo, que dizer dos recursos “naturais” de que dispomos hoje? Agricultura, por definição é uma atividade humana, de transformação da natureza, portanto, uma artificialidade. E é muito mais eficiente em nos prover alimentos do que o simples extrativismo. A propósito, as formigas também praticam “agricultura”, cultivando fungos, e “pecuária”, criando e “ordenhando” pulgões para extrair deles uma secreção rica em nutrientes. O que apenas reforça a identidade do que fazemos com tudo mais que se faz no mundo “natural”. Continuando, só usamos roupas porque “subvertemos” a natureza, extraindo pelos de animais ou fibras de plantas e produzindo com eles os tecidos de que nos servimos para abrigo do frio e de outras agressões da – adivinhem – natureza. Esta, de si mesma, jamais nos traria pronta essa proteção. O mesmo se pode dizer de nossas construções. Estaríamos muito mais vulneráveis se nos contentássemos apenas com as árvores e cavernas intocadas.
Por óbvio que pareça o raciocínio acima, ele é passado por alto sempre que alguém imagina que nossa vida seria muito melhor se só aquilo que é “natural” fosse usado para comer, beber, tomar como remédio ou adotar como tratamento. Levado ao limite, esse modelo de vida revela-se insustentável. Só como exemplo, não se cozinha feijão apenas por conveniência. Feijão não cozido é tóxico. E que dizer da mandioca? É mortal, a menos que sua toxina seja eliminada por um procedimento bem conhecido desde os indígenas. São apenas dois exemplos em que o produto “artificial”, ou seja, depois de passar por um processamento que só humanos podem fazer, é melhor que o “natural”. Mesmo um crudívoro terá de tomar alguma providência antes de usar esses alimentos in natura, tornando-os, em algum grau, artificiais.
No fim das contas, quase tudo que extraímos da natureza tem de ser transformado de alguma forma para que possamos usá-lo. E é nessa transformação que introduzimos a artificialidade. Isso não implica que o artefato oriundo desse processo evadiu-se da natureza, tornando-se coisa estranha à mesma, ou que se tenha degradado e renegado sua origem. Trata-se de natureza transformada, mas ainda natureza. Como nós.
Certamente, enxergar numa coisa artificial apenas um tipo específico de coisa natural, não o seu contrário, não nega que há uma enorme diferença entre plantar milho, construir uma casa ou confeccionar uma roupa e produzir um adoçante a partir do petróleo, transformar corantes têxteis em antibióticos ou submeter uma pessoa à quimioterapia na esperança de que esta mate o câncer antes de matar o paciente. Seria o caso de imaginar que pouca artificialidade é aceitável e que o problema começa quando ela vai longe demais? Até onde vejo, não mora aí a raiz do problema. Mas isso é assunto pra outro post. Até lá.


1 Em computação, diríamos que “artificial” é uma subclasse de “natural”.
2 Gênesis 2:15.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Analfabeto ou doutor?

As duas últimas semanas foram marcadas, no mundo do futebol, pela notícia do internamento de Sócrates, o “Doutor” Sócrates, na UTI do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Revelou-se depois que tudo era consequência tardia de nada menos que alcoolismo, a despeito de uma abstinência que já duraria três meses, segundo o próprio ex-jogador em entrevista concedida após sua alta. No momento em que escrevo estas linhas, ele está de volta à UTI, em estado grave.
O caso é emblemático pra mim, porque traz à tona um pensamento que tenho nutrido há muitos anos, e que nasceu de ouvir a inusitada afirmação de um então colega de trabalho que, diante de um papel com anotações manuscritas quase ilegíveis, sapecou: “Quem escreveu isto aqui, das duas uma: era analfabeto ou doutor”. Não sei se a frase era original ou não, mas era a primeira vez que eu a ouvia. Achei divertida e genial. Afinal, quem nunca se revoltou ao tentar decifrar uma receita médica em que o “doutor” caprichou para que ninguém a lesse? Sim, mas o que isso tem a ver com o “Doutor” Sócrates, fora o fato de ser ele médico formado? Eu chego lá.
Voltando à tirada de meu ex-colega, se pararmos pra pensar, é muito curioso que os dois extremos da escala de instrução formal tenham em comum exatamente a incapacidade de se comunicar por escrito. Mas há algo bem além da mera curiosidade nesse fato. Posso estar equivocado, e terei prazer em ser corrigido por quem conhecer mais do assunto, mas desde que ouvi essa inesperada equiparação, não consigo me livrar da sensação de que existe algo deplorável por trás dela. Se numa ponta está um (semi)analfabeto, incapaz de escrever de modo legível porque não aprendeu a fazê-lo, na outra está uma pessoa que alcançou tão alto patamar na formação acadêmica que se acha isenta da obrigação de se fazer entender. Pior: escrever o que ninguém pode ler é sinal de status. Confirma sua posição acima e além dos meros mortais. A estes resta se conformar com sua mediocridade e obedecer ao ditame social que os obriga a escrever de modo inteligível.
Curiosamente, também há alguns anos, vi anunciado o resultado de uma pesquisa na qual se concluía que o percentual de pessoas dependentes do cigarro era bem maior nas camadas menos instruídas da população. Eu teria de ir atrás de mais dados, e confesso que estou sem tempo agora, mas arrisco dizer que mais ou menos a mesma coisa acontece em relação ao abuso de bebidas alcoólicas. Trata-se de outra notícia que faz pensar: porque as pessoas mais instruídas preferem não fumar? Ou não beber, pelo menos não ao ponto de se tornarem dependentes? Obviamente, o acesso à informação (que faz o indivíduo pensar duas vezes antes de se meter numa roubada crônica) e o melhor nível de renda (que cria mais opções de autossatisfação) têm um importante papel na formação desse perfil mais saudável dos mais instruídos. Mas tem uma coisa que essa pesquisa parece ter deixado de fora. Os “mais instruídos” que a média. Não falo aqui de médicos, nem de bacharéis ou mesmo de doutores do mundo acadêmico. Falo de uma classe especial, acima até destas últimas: os intelectuais.
Sim, eu fico impressionado com a popularidade do cigarro e da bebida entre os intelectuais, especialmente aqueles que parecem achar que vão transformar – melhor, salvar – o mundo a partir de suas mesas de bar. Perdão, é preciso fazer um reparo: bar é coisa de gente sem nível, sem instrução, sem dinheiro, sem classe. Intelectual frequenta barzinho. E não é desregrado, é boêmio. Não é dependente nem viciado: usa drogas, nem sempre lícitas, como forma de usufruir da vida sem as limitações caretas da burguesia hipnotizada pelo discurso bom-moço da mídia pasteurizada. É marca registrada da “intelectualidade” não se negar esses gratificantes prazeres.
Quando Carlos Heitor Cony se insurge contra as campanhas antitabagistas alegando que são crias do puritanismo norte-americano; quando João Ubaldo Ribeiro, em plena luta contra o alcoolismo, ridiculariza a busca frenética pela qualidade de vida à custa de não beber, não fumar, não perder noite; quando Gilberto Gil chama de “alteradores de consciência”, coadjuvantes da atividade criativa, as drogas de sua juventude tropicalista, quem vai se contrapor a dois imortais da ABL e a um ex-Ministro da Cultura? Eu não consigo evitar o paralelo com a (falta de) caligrafia: o cara que bebe e fuma ou é um ignorante ou um intelectual, com a diferença de que na primeira hipótese esses “hábitos” são vício; na segunda, são virtude. No meio, estão os (semi)abstêmios, eufemismo para medíocres. Os que habitam o topo dessa “hierarquia” parecem se achar isentos do alto imposto que cigarro (ou suas variantes: charuto, cachimbo, etc.) e bebida cobram na forma de câncer, cirrose, enfisema, AVC... Parece que esse preço só vai ser pago pela plebe ignara, da qual não fazem parte. Não consigo deixar de ver nessa atitude a mesma empáfia de um “doutor” que avia receitas em hieroglifos maias.
Cumprindo minha promessa, volto ao “Doutor” Sócrates. Além de “doutor”, ele é sabidamente um intelectual, fundador da Democracia Corintiana, um cara de raciocínio acima da média, politizado, bom de papo, tudo que um grande pensador pode ser. E um alcoólatra. O triste disso tudo é sua dependência do álcool não é novidade nenhuma, mas nunca foi considerada como tal. A mídia jamais mencionou isso, embora qualquer observador atento pudesse perceber. Ocorre que Sócrates não era um bebum de quinta categoria. Era o “Doutor”: médico, craque, “filósofo”... e bom de copo, claro. Tinha todas as credenciais de um verdadeiro intelectual. Não passava pela cabeça de seus “amigos” e bajuladores dizer que ele era um viciado. Aliás, que palavra mais feia pra se referir a uma pessoa de sua estirpe. Agora, talvez apenas um transplante de fígado o salve. Bem que algum desses “amigos” poderia se habilitar.
Quanto ao ser humano Sócrates, longe de mim torcer contra ele. Eu, que o vi jogar maravilhosamente, que o ouvi falar com tanta inteligência, só posso desejar-lhe o melhor. E melhoras.

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