domingo, 31 de julho de 2011

Evangelho e homofobia (parte 1)

Eis um assunto tão problemático que nem sei se devia abordá-lo. Não porque eu tenha medo dele ou o ache tabu, mas por dois motivos: é muito fácil passar por ignorante quando se aborda um tema difícil, vasto e polêmico; e esse tema em particular desperta ódios em muita gente que se mete a discuti-lo. Sou egresso de um meio evangélico, e nesse meio estão os melhores amigos que tenho no mundo. Então eu fico pensado em vários dos amigos que leram o primeiro texto neste blog, que o acharam muito bonitinho e tal, mas que podem não ficar muito satisfeitos com o que vão ler aqui. Paciência, não se pode agradar a todos.

Achei curioso que o primeiro e único comentário ao meu post anterior mencionasse de passagem o problema da homofobia, porque esse era exatamente o assunto seguinte a clamar em minha mente para vir à luz. Um dos motivos desse clamor é que eu me incomodo com o que ouço a respeito dos evangélicos por parte de quem combate a homofobia, ao tempo em que lamento o fato de grande parte dos mesmos evangélicos demonstrarem completo despreparo para viver num mundo laico. Essa discrepância entre visões de mundo é vasta o suficiente pra tornar impossível esgotar o assunto numa única postagem. Podem esperar, que eu volto a essa matéria em outras oportunidades.

Por hoje, eu pretendo me deter na questão da união civil entre pessoas do mesmo sexo, o chamado casamento gay. Pra não deixar dúvidas, afirmo que sou totalmente a favor. Ponto. Cabe então expor porque acho que evangélicos não deveriam ser contra. O motivo é deveras simples: porque os evangélicos, mais do que ninguém, deveriam defender a liberdade religiosa. Sim, o assunto tem tudo a ver com liberdade religiosa, esse direito tão valioso que foi conquistado a duras penas ao longo dos últimos cinco séculos. No rastro do que será dito, espero ficar claro que o mesmo se aplica a católicos, espíritas, macumbeiros ou adeptos de qualquer outra ou nenhuma religião.

O aspecto religioso do problema é óbvio: qual o motivo alegado para que a união entre homossexuais seja proibida, ou, no mínimo, não tenha o mesmo amparo legal de que goza o casamento convencional? Os evangélicos amparam-se sempre na condenação bíblica ao homossexualismo1. Ora, se o caso é esse, trata-se de uma proibição de cunho religioso. Que outro motivo um cristão (afinal, o evangélicos não são os únicos nessa argumentação) pode alegar para ser contra a união homoafetiva? Que argumento legal ele pode trazer à tona? Que a Constituição só considera casal o composto por homem e mulher? Ora, isso pode ser mudado com uma emenda, ou com uma interpretação progressista, como fez o STF recentemente. Resta o quê, então? Alguém me mostre, por favor, porque eu não encontro outra motivação que não seja religiosa2. E se a motivação é religiosa, ela não deve encontrar guarida na lei civil de um Estado laico.

E laico o Estado dever ser. Se não, que princípios religiosos ele deve adotar? Por exemplo, em quase todo o cristianismo, sexo fora do casamento é pecado. Deveria a lei desamparar nos seus direitos civis os adolescentes solteiros que perdem a virgindade, os homens e mulheres adúlteros, os separados, os recasados, os filhos de relações “ilegítimas”? Graças a Deus (perdão se o uso aqui for considerado vão) que isso não acontece mais! Mas já aconteceu, e por força de imposições que no fim das contas eram de origem puramente religiosas.

Um exemplo mais preciso, no mesmo tom: a Igreja Católica condena o divórcio, e lutou muito – em vão – a contra a aprovação da lei que em 1977 liberou o divórcio no Brasil. Hoje, inúmeros evangélicos usufruem dessa lei para se divorciar e até para casar de novo, porque eles acham que têm esse direito em circunstâncias que, para o Vaticano, jamais justificariam um divórcio. Que seria deles se a opinião católica continuasse a valer na lei civil?

E quanto a outras divergências? Existem no meio cristão doutrinas que proíbem a transfusão de sangue, outros não admitem o trabalho aos sábados, a maioria considera o domingo um dia sagrado, há quem não queira ver seus filhos aprendendo que o homem evoluiu do macaco, e pra cada uma dessas ideias existem, só pra mencionar o amplo espectro do cristianismo, os que pensam exatamente o contrário! Qual dessas correntes deveria o Estado adotar em cada caso? E eu nem mencionei os não cristãos: budistas, adeptos do candomblé3, islâmicos, hindus e ateus. Que tal proibir o comércio e o consumo de carne de vaca? Ou de qualquer carne? Ou proibir mulheres de descobrir a cabeça fora de casa? Não cabe ao Estado impor proibições que só interessam aos adeptos desta ou de outra doutrina.

Mais importante ainda, não cabe ao Estado negar sua proteção a quem vive em desacordo com qualquer dessas doutrinas. Por isso, um casal homoafetivo não pode, porque está em desacordo com um preceito religioso, ficar na insegurança jurídica de não poder contar com o amparo que a lei dá a respeito de partilha de bens, herança, deduções de imposto de renda, dependência em planos de saúde públicos ou privados e até no que se refere à guarda e criação de filhos, adotados ou não. Negar esse amparo a um casal homossexual é como negar os direitos legais básicos de que gozam mães solteiras, filhos “ilegítimos”, pessoas descasadas, casais “amasiados”, e todos aqueles que de alguma forma estão fora do que prescreve o “bom comportamento” cristão. Trata-se exatamente da mesma coisa.

E por se tratar da mesma coisa, a união civil entre homossexuais deve ser aprovada pelo Estado, para que esses casais gozem dos mesmíssimos direitos de que gozam os casais que contam com a aprovação de seus respectivos grupos religiosos. Até porque existem correntes no próprio cristianismo que não consideram pecado sentir nem praticar a homossexualidade, inclusive aceitando em seu clero padres e pastores declaradamente homossexuais. Deveria o Estado considerar hereges essas correntes e adotar a visão dos cristãos “ortodoxos”? E que dizer das religiões não cristãs que não condenam a homossexualidade? Deve o Estado considerá-las pagãs e ignorar suas opiniões? O fato de o Brasil ter maioria cristã não dá aos cristãos o direito de dizer como as minorias não cristãs devem viver. E se há um grupo que deveria saber disso são os evangélicos, uma vez que, embora muitos, ainda são minoria, e se não houvesse liberdade religiosa, poderiam muito bem ter várias de suas práticas e crenças ameaçadas pela maioria que ainda é católica, e estar reduzidos hoje a uma minoria ainda... menor.

Resumindo, para que haja liberdade religiosa é preciso que o Estado não se comprometa com nenhuma religião ou corrente religiosa em particular, e isso implica que ele não pode se omitir de proteger como a qualquer outro cidadão aqueles que vivem em desacordo com uma doutrina religiosa, seja ela qual for.

É simples assim. Ou não?


1Os patrulheiros da correção política devem condenar-me pelo uso dessa palavra. Mas vejam http://aulete.uol.com.br/site.php?mdl=aulete_digital&op=loadVerbete&pesquisa=1&palavra=homossexualismo. Ela é sinônimo de “homossexualidade” e eu sempre a usei sem jamais imaginar que houvesse um ranço pejorativo nela. Além do mais, o contexto refere-se a uma visão negativa da homossexualidade, o que torna adequado, a meu ver, o uso de uma palavra que ganhou com o tempo essa conotação considerada ofensiva.

2Na verdade, eu encontro, mas ela é pseudo-não-religiosa. A discutir.

3A bem da verdade, o sincretismo cuidou de tornar o candomblé uma corrente a mais dentro do cristianismo.

8 comentários:

  1. Muito interessante a ideia do texto.
    Só saliento que união civil entre pessoas do mesmo sexo é diferente de casamento gay. Apenas um casal que obteve a união civil recentemente conseguiu convertê-la em casamento.

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  2. O raciocínio é límpido, claro e sem retoques.
    Sempre defendi essa idéia e fico muito feliz de vê-la tão bem traduzida em palavras.

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  3. Parabéns!!! excelente texto, vou vir mais poraki!! abraços e boa sorte!

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  4. não vejo diferença nenhuma no casamento entre as pessoas, no meu ver, é algo entre 2 pessoas... não importando qual é o sexo. gostei muito do texto. muitas coisas em nossa vida, são rebatidas por conta de opiniões religiosas, mas graças a Deus o mundo está mudando!

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  5. Muito,muito simples!!!! Concordo com você! Parabéns.

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  6. adorei mesmo, parabéns...não vejo diferença entre casamento entre pessoas do mesmo sexo e de diferente, o que importa é o sentimento e o compromisso.

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  7. Vim de família católica e hoje não sigo nenhuma religião, entre outras coisas por acreditar que o Estado deva servir a todos. O motivo da resistência à união civil entre pessoas do mesmo sexo é religioso. Entretanto, os homossexuais mesmo com menos direitos, pagam impostos do mesmo jeito, ou seja, tem os mesmos deveres que todos.

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  8. TOTALMENTE CONTRA!
    CRIOU DEUS O HOMEM E A MULHER.
    Ñ TRATA-SE DE PERMITIR OU Ñ PERMITIR,O CASO É QUE DIANTE DA PALAVRA DE DEUS,A BÍBLIA AFIRMA QUE FICARÃO DE FORA OS CÃES,OS FEITICEIROS ,OS IDÓLATRAS,OS MENTIROSOS,OS HOMICIDAS,OS ADÚLTEROS E TODOS AQUELES QUE AMAM E COMETEM A INIQUIDADE...Ñ TRATA DE EVANGÉLICOS SER A FAVOR OU CONTRA...APENAS É DITO O QUE DIZ A BÍBLIA.E LÓGICO:VALE RESALTAR QUE O RESPEIKTO DEVE SE EXISTIR,NADA DE PRECONCEITOSSS.

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