domingo, 24 de julho de 2011

Amor e narcisismo

Este blog não poderia começar melhor do que mencionando minha filha. Ela me fez escrever estas linhas. Que já dançavam na minha mente há muito tempo, é verdade. Mas dela veio a motivação para fazer estas palavras rodopiantes marcharem ordenadamente até alcançar a retina de seus eventuais leitores.

Nestes últimos dias, minha filha tem-me feito gestos de carinho tão tocantes que eu não pude deixar de me derreter com eles. Eu a amo desde o primeiro momento em que a peguei nos braços, mas essa recente expansão de seu carinho fez meu amor crescer a um ponto que eu me vejo na iminência de, como descreveu-me uma amiga que conhece bem essa intensidade de sentimento, ver meu coração estourar num “ploc!” de emoção incontível.

Esta situação me fez refletir pela enésima vez sobre a natureza desse amor que sentimos. E essa reflexão sempre me faz perceber que há uma enorme dose de narcisismo na raiz desse amor. Tal relação pode parecer insuspeita ao olhar desatento, mas não tem nada de realmente surpreendente. Dada a natureza essencialmente egocêntrica do ser humano, não há porque estranhar que mesmo nossos mais belos sentimentos tragam em si a marca da egolatria.

Senão vejamos. Que são as outras pessoas para nós além de espelhos nos quais enxergamos nossos próprios reflexos? Mais ou menos distorcida, mais ou menos fiel ao que achamos que somos, nossa imagem está estampada na forma como reage a nós cada pessoa com quem nos relacionamos. Algumas gostam mais de nós do que outras. As que mais nos demonstram apreço costumam despertar em nós sentimentos recíprocos. Gostamos de ser estimados, queridos, amados. E por uma razão bem simples: as pessoas que nos amam, em maior ou menor grau, são espelhos que nos dizem que somos belos, especiais, “amáveis”. Ah, e como gostamos disso! Ficamos extasiados diante de águas plácidas que nos pintam com tamanha beleza.

Por isso o ser amado, ao nos presentear com a reciprocidade, deixa-nos tão gratificados, faz-nos amá-lo ainda mais. Se amamos uma pessoa, é porque enxergamos nela beleza. Enxergamos nela muito do que somos, ou do que gostaríamos de ser, do que nos falta para nos sentirmos belos. Seja por confirmar o que achamos de nós mesmos, seja por preencher as lacunas que nos diminuem, o amor correspondido nos recompensa com a certeza de que, sim, naquele espelho podemos nos contemplar e nos enxergar belos, como sempre quisemos. Nossa autoestima agradece.

Aliás, “autoestima” é a palavra-chave. Ela é nada mais que a estima, o apreço, o valor que damos a nós mesmos. E de que modo podemos nos avaliar se não temos como olhar para o que somos? Pra isso servem os espelhos. Nossa imagem, nossa autoimagem, forma-se em grande medida a partir do outro. Até onde sei, é difícil ter autoestima quando não se é amado. Mas como ela cresce quando alguém que nos é caro nos diz “eu te amo”! E como esse afago em nossa autoestima torna ainda maior o nosso amor!

Não posso então concluir que o narcisismo inerente ao amor seja em si ruim. Mesmo o amor ao próximo como a nós mesmos implica a necessidade do amor-próprio. Se a menção de uma palavra tão feia como “egolatria” prenunciava conclusão oposta, é por pura falta de vocábulo adequado a meu dispor. Também não tenho a pretensão de ter escrito um post à prova de Freud. Apenas desejo compartilhar minhas ruminações sobre o tema, deixando-o aberto a comentários, que serão muito bem-vindos.

É claro que minhas considerações talvez não fossem pertinentes se eu estivesse falando do amor ágape. Mas isso é algo fora do meu alcance no momento, e talvez sempre. Voltando ao motivo deste texto, só posso dizer que, de modo egocêntrico, humano, bem humano, eu amo minha filha de todo o coração. E fico imensamente feliz de ver que ela me ama também. O amor recíproco é uma bola de neve montanha abaixo.

6 comentários:

  1. Caro colega,

    Boa pauta. Começou bem. Entendo os sentimentos citados, ao inverso, quando findo em ódio, é também a rejeição de si. Assim entendo que, por exemplo, os homofóbicos não suportam a própria homossexualidade latente. E assim é, com vários outros sentimentos. Eu mesmo... odeio gordos fanfarrões, mas amo os compositores de alma verdadeira. Isso tudo é bom e ruim. Como aceitar que não somos solidários, apenas cumprimos o que proclama o instinto de preservação da espécie? Na mais imparcial avaliação, somos macacos com mais ligações neuroniais. Que coisa louca, não? O que se há de fazer, se Deus quer brincar de Lego?

    Gilton Lobo

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  2. Versão final (espero) postada hoje.

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  3. Bom poder fazer o Estágio I da disciplina Amor Geral. Penso que esse é o começo do começo. Amar o filho, em sua infância, e por ele ser amado prepara-nos para amar mais adiante e mais largamente. Nessa primeira empreitada, até corremos o risco de aprender um pouco sobre tolerância.

    Seguindo Abelárdicas.

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    1. Cara Aglacy,

      Por uma imperdoável barbeiragem, só hoje percebi seu comentário. Minhas desculpas e meu agradecimento.

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    2. Não me deve desculpas. Apenas mais textos.

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    3. Rosivaldo Alves16 novembro, 2013 16:17

      Cara Aglacy,

      Por uma imperdoável barbeiragem, só hoje percebi seu comentário. Minhas desculpas e meu agradecimento.

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