As duas últimas semanas foram marcadas, no mundo
do futebol, pela notícia do internamento de Sócrates, o “Doutor”
Sócrates, na UTI do Hospital Albert Einstein, em São Paulo.
Revelou-se depois que tudo era consequência tardia de nada menos que
alcoolismo, a despeito de uma abstinência que já duraria três
meses, segundo o próprio ex-jogador em entrevista concedida após
sua alta. No momento em que escrevo estas linhas, ele
está de volta à UTI, em estado grave.
O caso é emblemático pra mim, porque traz à
tona um pensamento que tenho nutrido há muitos anos, e que nasceu de
ouvir a inusitada afirmação de um então colega de trabalho que,
diante de um papel com anotações manuscritas quase ilegíveis,
sapecou: “Quem escreveu isto aqui, das duas uma: era analfabeto ou
doutor”. Não sei se a frase era original ou não, mas era a
primeira vez que eu a ouvia. Achei divertida e genial. Afinal, quem
nunca se revoltou ao tentar decifrar uma receita médica em que o
“doutor” caprichou para que ninguém a lesse? Sim, mas o que isso
tem a ver com o “Doutor” Sócrates, fora o fato de ser ele médico
formado? Eu chego lá.
Voltando à tirada de meu ex-colega, se pararmos
pra pensar, é muito curioso que os dois extremos da escala de
instrução formal tenham em comum exatamente a incapacidade de se
comunicar por escrito. Mas há algo bem além da mera curiosidade
nesse fato. Posso estar equivocado, e terei prazer em ser corrigido
por quem conhecer mais do assunto, mas desde que ouvi essa inesperada
equiparação, não consigo me livrar da sensação de que existe
algo deplorável por trás dela. Se numa ponta está um
(semi)analfabeto, incapaz de escrever de modo legível porque não
aprendeu a fazê-lo, na outra está uma pessoa que alcançou tão
alto patamar na formação acadêmica que se acha isenta da obrigação
de se fazer entender. Pior: escrever o que ninguém pode ler é sinal
de status. Confirma sua posição acima e além dos meros mortais. A
estes resta se conformar com sua mediocridade e obedecer ao ditame
social que os obriga a escrever de modo inteligível.
Curiosamente, também há alguns anos, vi
anunciado o resultado de uma pesquisa na qual se concluía que o
percentual de pessoas dependentes do cigarro era bem maior nas
camadas menos instruídas da população. Eu teria de ir atrás de
mais dados, e confesso que estou sem tempo agora, mas arrisco dizer
que mais ou menos a mesma coisa acontece em relação ao abuso de
bebidas alcoólicas. Trata-se de outra notícia que faz pensar:
porque as pessoas mais instruídas preferem não fumar? Ou não
beber, pelo menos não ao ponto de se tornarem dependentes?
Obviamente, o acesso à informação (que faz o indivíduo pensar
duas vezes antes de se meter numa roubada crônica) e o melhor nível
de renda (que cria mais opções de autossatisfação) têm um
importante papel na formação desse perfil mais saudável dos mais
instruídos. Mas tem uma coisa que essa pesquisa parece ter deixado
de fora. Os “mais instruídos” que a média. Não falo aqui de
médicos, nem de bacharéis ou mesmo de doutores do mundo acadêmico.
Falo de uma classe especial, acima até destas últimas: os
intelectuais.
Sim, eu fico impressionado com a popularidade do
cigarro e da bebida entre os intelectuais, especialmente aqueles que
parecem achar que vão transformar – melhor, salvar – o mundo a
partir de suas mesas de bar. Perdão, é preciso fazer um reparo: bar
é coisa de gente sem nível, sem instrução, sem dinheiro, sem
classe. Intelectual frequenta barzinho. E não é desregrado, é
boêmio. Não é dependente nem viciado: usa drogas, nem sempre
lícitas, como forma de usufruir da vida sem as limitações caretas
da burguesia hipnotizada pelo discurso bom-moço da mídia
pasteurizada. É marca registrada da “intelectualidade” não se
negar esses gratificantes prazeres.
Quando Carlos Heitor Cony se insurge contra as
campanhas antitabagistas alegando que são crias do puritanismo
norte-americano; quando João Ubaldo Ribeiro, em plena luta contra o
alcoolismo, ridiculariza a busca frenética pela qualidade de vida à
custa de não beber, não fumar, não perder noite; quando Gilberto
Gil chama de “alteradores de consciência”, coadjuvantes da
atividade criativa, as drogas de sua juventude tropicalista, quem vai
se contrapor a dois imortais da ABL e a um ex-Ministro da Cultura?
Eu não consigo evitar o paralelo com a (falta de) caligrafia: o cara
que bebe e fuma ou é um ignorante ou um intelectual, com a diferença
de que na primeira hipótese esses “hábitos” são vício; na
segunda, são virtude. No meio, estão os (semi)abstêmios, eufemismo
para medíocres. Os que habitam o topo dessa “hierarquia” parecem
se achar isentos do alto imposto que cigarro (ou suas variantes:
charuto, cachimbo, etc.) e bebida cobram na forma de câncer,
cirrose, enfisema, AVC... Parece que esse preço só vai ser pago
pela plebe ignara, da qual não fazem parte. Não consigo deixar de
ver nessa atitude a mesma empáfia de um “doutor” que avia
receitas em hieroglifos maias.
Cumprindo minha
promessa, volto ao “Doutor” Sócrates. Além de “doutor”, ele
é sabidamente um intelectual, fundador da Democracia Corintiana, um
cara de raciocínio acima da média, politizado, bom de papo, tudo
que um grande pensador pode ser. E um alcoólatra. O triste disso
tudo é sua dependência do álcool não é novidade nenhuma, mas
nunca foi considerada como tal. A mídia jamais mencionou isso,
embora qualquer observador atento pudesse perceber. Ocorre que
Sócrates não era um bebum de quinta categoria. Era o “Doutor”:
médico, craque, “filósofo”... e bom de copo, claro. Tinha todas
as credenciais de um verdadeiro intelectual. Não passava pela cabeça
de seus “amigos” e bajuladores dizer que ele era um viciado.
Aliás, que palavra mais feia pra se referir a uma pessoa de sua
estirpe. Agora, talvez apenas um transplante de fígado o salve. Bem
que algum desses “amigos” poderia se habilitar.
Quanto ao ser humano
Sócrates, longe de mim torcer contra ele. Eu, que o vi jogar
maravilhosamente, que o ouvi falar com tanta inteligência, só posso
desejar-lhe o melhor. E melhoras.
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