Cumprindo o que prometi, trago um novo texto sobre o assunto. Desta vez, quero me deter no tema do projeto de lei que criminaliza a homofobia. Seria muita pretensão da minha parte dizer que tenho repostas para as questões que esse projeto de lei levanta. Mas este blog não tem o nome que tem à toa. Este espaço existe para que assuntos difíceis possam ser pensados, não resolvidos. Não há espaço pra dogma aqui.
Então vamos ao trabalho. Sempre que algum noticiário ou blog abre na internet espaço para comentários sobre o assunto, eu vejo evangélicos, às vezes com muita veemência, expressarem o temor de que serão perseguidos porque não poderão pregar que homossexualismo é pecado; não poderão citar os famosos textos bíblicos que condenam de modo contundente todo desvio da sexualidade considerada “sadia”; não poderão chamar ao arrependimento os pecadores empedernidos que insistem em suas abomináveis práticas homossexuais, pedófilas, zoófilas e afins. Eu não sei que fim vai ter esse projeto de lei, mas preciso deixar claro que eu também me preocupo com a possibilidade de que essas crenças e sua pregação sejam consideradas crimes de homofobia. No primeiro texto meu sobre o tema, defendi minha posição com base no princípio da liberdade religiosa. Invoco aqui esse mesmo princípio para defender que evangélicos, católicos, muçulmanos, judeus e quem mais quiser têm todo o direito de achar que homossexualidade é pecado. E de pregar isso. E mesmo de tentar convencer seus potenciais prosélitos de que precisam acreditar nisso. Negar esse direito é um ato de violência contra a liberdade de expressão, de culto e de crença.
No entanto, isso não significa que eu sou contra tornar crime a homofobia. Não sei como essa equação vai ser resolvida, mas considero, sim, que homofobia deve ter o mesmo tratamento que a lei dá à “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” (Lei nº 7.716, de 5 de Janeiro De 1989, Art. 1º). Racismo é crime. Discriminação religiosa é crime. Xenofobia, se entendo bem o texto da lei, é crime. E o artigo 20 da mesma lei ainda torna crime “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito” dos tipos já mencionados. Aí é que o bicho pega. O próprio ato de pregar a discriminação ou preconceito já é crime. Já vi juristas dizerem que nos Estados Unidos uma lei assim seria inconstitucional, porque a liberdade de expressão, lá, é tão sagrada que você pode disseminar quanto ódio você queira: o crime só vai existir quando o ódio deixar de ser discurso para se tornar prática. Reitero que sou profundamente ignorante quanto ao direito, mas aprendi que nenhum direito é absoluto, e essa é uma das razões pra nossa lei considerar que a liberdade de expressão deve ser tolhida quando usada para disseminar o ódio. É uma questão de pesar o que vale mais: o direito de dizer o que se pensa ou o de não ser alvo de campanhas discriminatórias que fatalmente resultam em vítimas de violência. Acho fácil escolher.
O que acontecerá, então, se essa lei for alterada para tornar crime a homofobia, seja ela efetivamente praticada ou apenas induzida ou incitada? Os religiosos ainda poderão pregar contra a homossexualidade? Depende, claro, de como vai ficar o texto da lei, e eu não sou futurólogo. Depende ainda de como os tribunais vão interpretar o texto da lei. Mas talvez dependa muito mais de como as igrejas e demais agremiações religiosas querem ter o direito de tratar desse assunto. Porque a história mostra que as religiões monoteístas, aí incluídas o cristianismo, o judaísmo e o islamismo, são discriminatórias por definição. Elas dividem o mundo em fiéis e infiéis, santos e pecadores, justos e ímpios, salvos e perdidos. Quem vê isso de fora detesta, quem vê isso de dentro acha tão natural que nem percebe isso como uma discriminação. A propósito, discriminar é fazer diferença, distinguir, separar, discernir (vejam http://aulete.uol.com.br/site.php?mdl=aulete_digital&op=loadVerbete&pesquisa=1&palavra=discriminar). Não é necessariamente um ato de ódio. Por isso uso essa palavra aqui. A discriminação passa a ser reprovável, inclusive pela lei, quando significa que essa diferenciação chega ao ponto de negar direitos com base na diferença pura e simples: não pode trabalhar aqui porque é negro; não pode ser promovida porque é judia; não pode alugar essa casa porque é espírita; não tem direito ao respeito porque é paraguaio. Isso é crime.
No fim das contas, o direito de discriminar, de diferenciar o certo do errado segundo seus critérios, sempre foi e continua sendo usado pelas religiões, que o fazem hoje com enorme liberdade. Para o catolicismo, é pecado divorciar-se; casar de novo, então, é inadmissível: o transgressor sequer tem direito à eucaristia, sendo um adúltero impenitente. Os evangélicos pensam mais ou menos igual, embora muitos vejam brechas para separar e casar de novo que não são admitidas no catolicismo. De um modo ou de outro, o mundo pulula de adúlteros, e eles sofrem sanções eclesiásticas importantes quando são membros de uma comunidade religiosa cristã. Ninguém questiona o direito dessas religiões discriminarem as pessoas conforme sua adesão ou não a seus padrões morais.
Continuando os exemplos, para as testemunhas de Jeová, doar ou receber sangue é pecado muito grave, passível de desassociação, que é como chamam a excomunhão entre eles. Comemorar aniversário também. Para os adventistas do sétimo dia, trabalhar no sábado é motivo para disciplina eclesiástica: o (in)fiel fica sem direito a voz ou a voto na igreja; a transgressão reiterada leva à final exclusão do rol de membros. Vale o mesmo pra quem bebe, por exemplo. Não se concebe um evangélico que participe de sessões espíritas ou que encomende um trabalho num terreiro de candomblé. A pessoa que incorre em tão flagrante negação de sua fé em geral será excluída da comunhão plena da igreja. Dá-se o mesmo com quem assume, aceita, vive e defende sua condição de homossexual. Não conheço casos de questionamentos legais quanto a essas práticas “discriminatórias”. E suponho que, se ocorreram, não encontraram amparo na justiça, porque o direito de dizer o que é certo ou errado numa dada religião não cabe ao Estado.
No entanto, há uma enorme diferença entre distinguir, segundo critérios próprios, o certo do errado, os fiéis dos infiéis, os convertidos dos perdidos, e adotar uma postura de agressão, desrespeito, humilhação e perseguição aos que são considerados “pecadores”. Se o primeiro caso é, no máximo, questionável, pois cada um tem direito a sua própria opinião sobre questões de conduta, o segundo caso é totalmente condenável. E essa é a razão pela qual acho que evangélicos, católicos e quaisquer outros religiosos deveriam ser defensores e não detratores de esforços para criminalizar o racismo, a discriminação religiosa, sexual, de gênero, de etnia e também de orientação sexual. Ou seja, deveriam estar entre os que desejam tornar a homofobia um crime!
Como não quero cansar (ainda mais) o pobre leitor deste blog, deixo para mais tarde o desdobramento desta minha conclusão.
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