Eis um tema que se revelou mais cansativo do que eu imaginava ao iniciá-lo. Mas espero concluir com estas (muitas) linhas. No último texto, defendi que evangélicos, cristãos e religiosos em geral que valorizam o ser humano e prezam a liberdade, inclusive a própria, deveriam estar à frente de e não contra esforços para criminalizar a homofobia. Vejamos se fica claro o porquê.
Nos meus textos sobre esse assunto, tenho insistido em exemplificar o que é considerado “pecado” por várias correntes religiosas. Dentre esses está, para a maioria das denominações cristãs, toda e qualquer forma de homossexualidade. Ocorre que esse “pecado” em especial parece ser alvo de uma indignação impressionante da parte dos religiosos, a ponto de pessoas comentarem em blogs que vítimas, inclusive fatais, de violência homofóbica estão apenas colhendo o que plantaram: o resultado de sua rebelião contra Deus. Citam textos bíblicos do tipo “o salário do pecado é a morte”, “Deus não se deixa escarnecer; porque tudo o que o homem semear, isso também ceifará”, e outros do gênero para, intencionalmente ou não, justificar a violência e até o assassinato. Aliás, mencionar que essa justificativa possa ser feita “sem intenção” até me indigna, porque uma pessoa capaz de argumentar dessa forma não tem o direito de ser inocentada, por suposta ingenuidade, da culpa de incitar, sim, a repetição desse tipo de violência. Certos tipos de ignorância pesam mais contra que a favor de seus portadores.
Nessa luta, evangélicos e católicos dão as mãos para barrar as tentativas de criminalizar a homofobia argumentando que perderão o direito de poupar seus filhos da corrupção gay, ao não poder protestar contra a visão infame de “bigodudos” se beijando em restaurantes, lésbicas andando de mãos dadas nas ruas ou sendo babás de suas filhas, ou à disseminação irrestrita da cultura gay em passeatas, programas de tevê e revistas “mundanas”. Temem a corrupção da sociedade e querem frear essa degradação. Os evangélicos, particularmente, têm uma visão um tanto “israelita” do problema, considerando que não podem ser cúmplices, por ação ou omissão, do pecado que pode atrair a maldição divina sobre toda uma nação conivente. É claro que não faltam textos bíblicos para corroborar essas teses.
Diante de tudo isso, vejo-me obrigado a entrar no terreno “teológico” para ver aonde tal raciocínio nos leva. Vou me deter em dois dos textos preferidos pelos campeões da moral e da fé cristã. O primeiro sequer menciona a homossexualidade, mas assim mesmo é um dos prediletos dos que combatem o “perigo arco-íris”.
Ficarão de fora os cães e os feiticeiros, e os que se prostituem, e os homicidas, e os idólatras, e qualquer que ama e comete a mentira. Apocalipse 22:15
Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus. 1 Coríntios 6:10
É curioso perceber que, para essas pessoas, parece que esses textos só se aplicam, de forma explícita ou velada, à questão homossexual. O que aconteceria se a mesma medida fosse usada para os demais pecados citados? Digo isso porque a Bíblia é contundente ao condenar, não só aqui mas de forma sistemática, todos esses pecados. Todos já foram em algum grau apontados como responsáveis pela derrocada espiritual, moral e até militar do povo de Israel. Mas parece que a comunidade religiosa cristã de nossos dias, tão ocupada que está em combater o “pecado de Sodoma”, esqueceu que por coerência deveria estar combatendo com mesmo vigor os outros pecados mencionados.
O primeiro deles, supondo que ser cão não seja pecado, é ser feiticeiro. Esse é um terreno perigoso, porque no meio evangélico, e, dependendo do grau de “fundamentalismo”, no católico também, essa condenação recai hoje sobre os que praticam o candomblé e até sobre o espiritismo, além de outras praticas religiosas animistas, xamânicas ou místicas das mais variadas formas. Por que não vemos evangélicos e católicos clamando pelo fechamento dos terreiros de candomblé e dos centros espíritas? Acaso a “feitiçaria” é um pecado menos grave do que a “sodomia”? Seu poder de corromper suas crianças é menor? Já imaginaram quantas crianças evangélicas são bombardeadas com elogios à cultura afro-brasileira nas escolas, na tevê, na música, no cinema, na literatura? Isso não vai comprometer a educação cristã que recebem em casa? Que tal censurar “Chico Xavier”, “Nosso Lar” ou “As Mães de Chico Xavier”, exibidos no cinema e propagandeados pelas mesmas novelas que dão tanto apoio à causa gay? Vamos banir “Harry Potter” e “O Senhor dos Anéis” das locadoras, da internet e das livrarias! Isso não pode corromper seus filhos?!
Só que tal coisa não é possível. A lei não deixa. Porque nosso país oferece a seus cidadãos liberdade de expressão e de culto, protegendo inclusive os templos, não só católicos e evangélicos, mas também os centros espíritas, os terreiros de candomblé, os pagodes budistas e as rodas do Santo Daime. Agora digam-me: se alguém começar a atacar terreiros, mães e pais de santo e até sócios do Ilê Aiyê, e estes vierem a público requerer a proteção do Estado contra a discriminação religiosa que estão sofrendo, os evangélicos e carismáticos se atreverão a dizer que o problema é deles, que estão colhendo o que semearam, que sobre eles pesa a maldição de Deus até que se convertam? Argumentarão que eles estão buscando privilégios pra continuar tendo a liberdade de disseminar sem embargo sua corrupção espiritual em nossa sociedade? A lógica é rigorosamente a mesma em relação à causa anti-homofóbica.
O segundo pecado citado acima é a prostituição. Que, aliás, não é crime em nosso país. Crime é explorá-la, ou seja, um terceiro ganhar dinheiro com a prostituição alheia. Até hoje as prostitutas são alvo de violência e discriminação. Muitas apanham e morrem apenas por serem prostitutas. Pior, há quem apanhe apenas porque parece ser prostituta. Qualquer semelhança com pai e filho agredidos porque expressaram carinho mútuo e foram confundidos com homossexuais não é mera coincidência. Como deve a comunidade cristã se portar quando associações de prostitutas saem às ruas ou vão à mídia pedir o fim dessa violência moral e física? Azar delas, “o salário do pecado é a morte”? Indo mais longe, a visibilidade delas em lugares onde só “pessoas de família” deveriam circular não se constitui uma influência ainda mais nefasta para nossas inocentes crianças do que a visão dantesca de dois homens se abraçando? Não deviam elas ser banidas da visão das pessoas de bem?
Outro pecado citado é o da idolatria. Ah, esse é um dos meus “preferidos”, porque coloca em campos opostos católicos e evangélicos, já que os últimos consideram idolátrica a veneração católica aos santos e suas imagens, aos símbolos e relíquias sagradas da igreja romana. E aí, quem vai encarar? Cadê os Gideões modernos que não se habilitam a derrubar os altares de Baal que infestam nosso “Israel” contemporâneo? Por que os zelosos evangélicos não tentam evitar que seus filhos sejam expostos à visão de crucifixos em paredes, ruas, monumentos e órgãos públicos? Isso pra não falar dos pescoços de milhares de pessoas nas praças, no comércio, na tevê, no trabalho, nas creches, nas escolas e – pasmem! – alguns desses idólatras são professores dos seus filhos! Vocês leem a Bíblia? Fazem ideia do horror que Deus dedica à idolatria? Vocês têm menos medo de que seus filhos se tornem idólatras do que de vê-los achar que ser homossexual é normal?!
Mas sabem o que aconteceria se, tomados por fervor religioso, alguns se dispusessem a repetir o heroísmo de Gideão? Seriam enquadrados como criminosos, por discriminação religiosa, talvez, e por vilipêndio a objeto de culto religioso, com certeza. Nós vimos algo parecido no gesto do pastor que chutou a santa, muitos anos atrás. Na época, eu vi pessoas da minha igreja de então, sempre bastante crítica à Universal do Reino de Deus, dizerem que ele não tinha errado, que idolatria deveria ser combatida daquela forma mesmo. Na minha opinião, se quisessem ser coerentes, os evangélicos que consideram intolerável ver homossexuais lutarem pelo direito de não ser enxotados de lugares públicos deveriam ter a mesma coragem de combater com veemência a exposição onipresente de imagens católicas, ou mesmo as dos orixás no Dique do Tororó, dispondo-se a derrubá-las em nome do Senhor dos Exércitos, ainda que pra isso tivessem que suportar a prisão, ver o mundo se voltar contra eles e fazer deles os novos mártires da fé, tão admirados no futuro quanto são hoje os que eram jogados aos leões por pregar contra a adoração a César.
Este post não terá fim se eu for falar individualmente dos devassos, dos adúlteros ou dos bêbados. Vamos acabar com o funk carioca; vamos impedir que os MCs Créus apresentem à sociedade as Mulheres Melancias; vamos varrer do mapa as coleguinhas de palco do Luciano Huck; abaixo a minissaia! Ah, e às moças que forem estupradas ao voltar de uma festa à qual foram com roupas provocantes, vamos dizer que “Deus não se deixa escarnecer...”. Vamos permitir, como antigamente acontecia em nossa sociedade brasileira, nos tempos em que prevaleciam a moral e os bons costumes, que mulheres descasadas, adúlteras, mães solteiras ou amasiadas sejam apontadas na rua e, pra não darem mau exemplo, até expulsas de recintos “familiares”. Vamos instituir a lei seca, não no trânsito, mas em tudo; acabar com a propaganda de cerveja; fechar todos os bares. O exemplo americano do início do século passado foi tão bem sucedido, por que não imitá-lo? Vocês têm menos medo de que seus filhos sejam expostos a toda essa imoralidade do que de saber que o professor deles é gay? Uma filha alcoólatra dá menos desgosto ao pai do que uma lésbica?
Estes últimos exemplos mostram que, para o bem ou para o mal, a sociedade não aceitaria a tutela religiosa nesses casos. Então os religiosos têm de se conformar em saber que o direito de se vestir de modo “indecente”, de ser sexualmente “devasso”, de adulterar, de se separar, de fazer sexo sem casar, de ajuntar-se, é uma escolha pessoal que só diz respeito a quem a faz. Se terceiros se sentem incomodados com a possível influência que esses casos podem ter em suas próprias convicções ou nas de seus filhos, cabe a eles munir-se das defesas que acharem apropriadas, mas não lhes cabe o direito de interferir nas escolhas dos que não acreditam no que eles acreditam, menos ainda de ditar onde e quando essas escolhas devem ser exercidas.
Como parêntese, quero lembrar que certos comportamentos ainda são considerados ilegais por ferir aos “bons costumes”. Fazer sexo em praça pública é um deles. Não estou advogando que deixe de ser. Adultério já foi crime e não é mais. Tampouco defendo que volte a ser. Matar uma esposa adúltera em defesa da honra já foi legal. Felizmente não é mais. Eu sei que os valores de uma sociedade são instáveis e que isso, para uma pessoa cuja religião dita verdades “imutáveis”, é difícil de aceitar. Mas o que defendo aqui é que, numa sociedade laica, o direito de uma religião impor às pessoas como elas devem agir limita-se aos que aceitaram essa tutela, ou seja, aos seus fiéis. O que passa disso, permitam-me a paráfrase, “procede do Maligno”.
Vou tentar resumir toda a argumentação dos meus últimos três textos da seguinte forma: evangélicos, católicos, cristãos em geral, têm todo o direito de acreditar que é pecado ser homossexual. Mas assim como nenhum cristão decente pode considerar que um espírita ou pai de santo deveria ser privado do direito de casar e criar filhos porque pratica uma suposta forma de “feitiçaria”, não pode achar que um casal homoafetivo não tem esse direito por praticar “sodomia”. Assim como um católico não pode ser privado do direito de expor em público sua “idolatria”, um homossexual não pode ser privado do direito de expor sua afeição pelo mesmo sexo. Fazer sexo em praça pública é proibido a todos, homossexuais ou não. Abusar crianças também. Mas beijar e abraçar é permitido a heterossexuais em qualquer situação informal; então por que deveria ser proibido a homossexuais? O nome disso é discriminação, e no pior sentido. A Bíblia é feroz na condenação do adultério. Até Jesus, ao proibir o divórcio e chamar de adúlteros os divorciados que voltam a casar com terceiros. Mas uma adúltera protagonizou uma das mais belas cenas da vida de Cristo, que a salvou do apedrejamento. Não é absurdo que dois mil anos depois os cristãos ainda prefiram estar entre os apedrejadores de gays? O pecado de ser “efeminado” merece menos tolerância do que o de ser “adúltero”? Um homossexual tem menos direito de exigir respeito do que uma “mulher descasada”? Se as igrejas, de bom grado ou não, toleram conviver num mundo cheio de pessoas que estão “em pecado” de adultério, mas que não precisam temer o apedrejamento físico ou moral, por que não podem suportar viver num mundo cheio de homossexuais assumidos e livres do mesmo temor? Enfim, considerar pecaminoso um comportamento é um direito inalienável de toda confissão religiosa. Isso em nada impede que essa mesma confissão ensine seus fiéis a ser tolerantes e a se posicionar contra, e não a favor da intolerância.
Afinal, se há uma lição do Evangelho que jamais deveria ser esquecida, é o amor ao próximo. Muitos evangélicos se escondem atrás do argumento de que isso não os obriga a amar o pecado. Afinal, Deus “odeia” o pecado. Eu não quero entrar nas implicações teológicas desses argumentos, mas gostaria de considerar isto: se você acha que seu “ódio” ao pecado justifica revoltar-se com um gay que foi agredido na rua por sua “sem-vergonhice” em vez de revoltar-se com seus agressores; se você acha que exigir o direito de não ser achincalhado moralmente por ser homossexual é abuso; se você acha que exigir uma lei que proteja um travesti dessas formas de agressão é atentar contra seu direito de crença, então você odeia o “pecador”. Toda argumentação em contrário é mera falácia. Quer ser cristão de verdade? Defenda o oprimido, quem quer que seja ele, não o opressor.
BRAVOOOOOO!!!!! Sem Palavras!!! Parabéns pelo coração Sábio e pela mente LIVRE!!!!
ResponderExcluirDíficil é não se deliciar com um texto tão bem produzido sobre um tema tão delicado. Parabéns, meu amigo, Rosivaldo!
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