Depois de tentar reabilitar a “reputação” da artificialidade, pretendo esticar a corda mais um pouco. Começarei por dizer que a dicotomia entre natural e artificial é – hã... – artificial. Sim, por estranho que pareça, esta é a realidade, o que eu espero deixar claro no decorrer deste texto.
Permitam-me começar com uma comparação. Achamos “natural” ver formigas transitando e transportando comida ou outros itens em verdadeiras estradas abertas no mato por elas mesmas. Nossas rodovias, no entanto, são vistas como coisas estranhas à natureza, quando a única diferença está no tamanho, na tecnologia usada, e no grau de impacto ambiental. Este último, aliás, as formigas também causam. Assim como os castores, que derrubam árvores e constroem diques em rios para garantir alimento e segurança. Nada muito diferente do motivo que nos leva a construir enormes e impactantes represas. Se uma raça extraterrestre, tão avançada que fôssemos para ela como formigas são para nós, pousasse por aqui, não veria nada de especial em nossas realizações. Estas seriam vistas como resultado natural da atividade de abundantes bichinhos bípedes que fervilham na superfície deste planeta. Seríamos vistos apenas como parte integrante da natureza, como de fato somos. Só o chovinismo impede que muitos de nós enxerguem isso.
De tais considerações decorre que, se artificial é tudo que foi feito pelo ser humano, e o ser humano é inescapavelmente parte da natureza, ora, tudo que o ser humano faz também o é, sendo, portanto, natural. No fim das contas, “artificial” não é uma categoria à parte de “natural”, menos ainda uma categoria antagônica a esta. Trata-se de uma subcategoria. Embora nem tudo que é natural seja artificial, tudo que é artificial é necessariamente natural1. É um raciocínio aristotélico.
Fora o possível prazer de alcançá-la – pensar é (quase) sempre agradável –, que importância tem essa conclusão? Bem, muita gente é incentivada a considerar tudo que o ser humano produz uma espécie de degeneração, de corrupção daquilo que a sábia natureza nos proporcionou. Creio que a conclusão acima permite-nos avaliar mais positivamente aquilo que nós fazemos.
Afinal, se pensarmos um pouco melhor, veremos que uma vida totalmente “natural” é impossível ou, no mínimo, inviável. Teríamos de viver como macacos, coletando frutos e raízes, sem roupas, abrigados em árvores ou cavernas, porque tudo que passa disso requer algum grau de artificialidade. Até a narrativa bíblica da criação diz que “Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo”2. Ora, se até o paraíso perfeito, recém-saído das mãos do próprio Criador, requeria cultivo, que dizer dos recursos “naturais” de que dispomos hoje? Agricultura, por definição é uma atividade humana, de transformação da natureza, portanto, uma artificialidade. E é muito mais eficiente em nos prover alimentos do que o simples extrativismo. A propósito, as formigas também praticam “agricultura”, cultivando fungos, e “pecuária”, criando e “ordenhando” pulgões para extrair deles uma secreção rica em nutrientes. O que apenas reforça a identidade do que fazemos com tudo mais que se faz no mundo “natural”. Continuando, só usamos roupas porque “subvertemos” a natureza, extraindo pelos de animais ou fibras de plantas e produzindo com eles os tecidos de que nos servimos para abrigo do frio e de outras agressões da – adivinhem – natureza. Esta, de si mesma, jamais nos traria pronta essa proteção. O mesmo se pode dizer de nossas construções. Estaríamos muito mais vulneráveis se nos contentássemos apenas com as árvores e cavernas intocadas.
Por óbvio que pareça o raciocínio acima, ele é passado por alto sempre que alguém imagina que nossa vida seria muito melhor se só aquilo que é “natural” fosse usado para comer, beber, tomar como remédio ou adotar como tratamento. Levado ao limite, esse modelo de vida revela-se insustentável. Só como exemplo, não se cozinha feijão apenas por conveniência. Feijão não cozido é tóxico. E que dizer da mandioca? É mortal, a menos que sua toxina seja eliminada por um procedimento bem conhecido desde os indígenas. São apenas dois exemplos em que o produto “artificial”, ou seja, depois de passar por um processamento que só humanos podem fazer, é melhor que o “natural”. Mesmo um crudívoro terá de tomar alguma providência antes de usar esses alimentos in natura, tornando-os, em algum grau, artificiais.
No fim das contas, quase tudo que extraímos da natureza tem de ser transformado de alguma forma para que possamos usá-lo. E é nessa transformação que introduzimos a artificialidade. Isso não implica que o artefato oriundo desse processo evadiu-se da natureza, tornando-se coisa estranha à mesma, ou que se tenha degradado e renegado sua origem. Trata-se de natureza transformada, mas ainda natureza. Como nós.
Certamente, enxergar numa coisa artificial apenas um tipo específico de coisa natural, não o seu contrário, não nega que há uma enorme diferença entre plantar milho, construir uma casa ou confeccionar uma roupa e produzir um adoçante a partir do petróleo, transformar corantes têxteis em antibióticos ou submeter uma pessoa à quimioterapia na esperança de que esta mate o câncer antes de matar o paciente. Seria o caso de imaginar que pouca artificialidade é aceitável e que o problema começa quando ela vai longe demais? Até onde vejo, não mora aí a raiz do problema. Mas isso é assunto pra outro post. Até lá.
1 Em computação, diríamos que “artificial” é uma subclasse de “natural”.
2 Gênesis 2:15.
Vamos lá.
ResponderExcluirParabéns pelo texto e concordo com ele. Pra mim essa dicotomia entre natural e artificial é apenas pra diferenciar o que veio diretamente da natureza (natural) e o que foi transformado de forma a atender a nossa necessidade e se transformou em algo fora da natureza (ou não natural). O homem é um animal como outro qualquer, seu único diferencial é a capacidade intelectual e devido a esse intelecto e as suas invenções se transformou em uma espécie "pandêmica" e uso esse termo porque o homem age como um vírus que invade um sistema originalmente em equilíbrio e o adapta a sua necessidade, destruindo, com isso o equilíbrio natural. Equilíbrio esse que é quebrado por outras espécies, na revista Veja dessa semana tem uma matéria falando sobre espécies que se tornaram um problema por terem sido introduzidas em áreas onde não tem predadores naturais.
O grande problema não é o desequilíbrio causado pela presença humana, mas a possibilidade de que esse desequilíbrio acabe por inviabilizar a vida humana no planeta Terra. Ou como dizia Raulzito nos idos de 70: "Buliram muito com o praneta e o praneta como um cachorro que eu vejo, não aguentando mais as pulgas se livra delas num sacolejo".