quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

O trigo nosso de cada dia – e suas lições


Em dois artigos anteriores1, tratei do antagonismo, sustentado pelo senso comum, entre o natural e o artificial. Deixei no ar a pergunta: o potencial de dano à natureza, por parte de um artefato ou procedimento, seria diretamente proporcional ao grau de artificialidade envolvido no mesmo?

Tomemos como exemplo o alimento mais consumido pelos seres humanos: o trigo, cuja farinha é usada no preparo de inúmeros tipos de comida. Refinada, essa farinha perde muitos de seus nutrientes, além de se tornar mais indigesta. Está aqui uma forma muito simples de artificialidade, conhecida há milênios, que nada tem de sofisticada. Não envolve engenharia química ou genética, transgenia nem física nuclear. Mesmo assim, é reconhecidamente danosa para a saúde humana. Não é à toa que profissionais de saúde recomendam, a quem quer ter uma vida saudável, trocar a farinha refinada pela integral.

Por que uma coisa tão básica – o peneiramento de uma farinha para remover farelo e germe nela incluídos – é capaz de resultar num prejuízo nutricional tão grande? Porque a adequação do trigo à alimentação humana é o resultado de um delicado equilíbrio construído ao longo de toda a história evolutiva das duas espécies, uma história que tem milhões de anos – bilhões, se contarmos o período pré-cambriano da vida2. É muito difícil alterar qualquer dos elementos dessa relação interespecífica sem quebrar esse equilíbrio. Num certo sentido, as adaptações por que humanos e trigo passaram para se adequar tão bem um ao outro embutem uma forma de conhecimento que não pode ser adquirido de modo trivial, o que torna muito improvável melhorar essa relação num golpe de sorte. Isso porque somos – os seres vivos – uma espécie de laboratório em permanente experimentação, numa sinergia que envolve inúmeros ciclos de tentativa e erro ao longo de milhões de gerações. As experiências infelizes são descartadas via seleção natural. As bem-sucedidas permanecem pela transmissão do sucesso genético à descendência de cada espécie. Não dá pra competir com o conhecimento acumulado por esse laboratório sem primeiro entender os detalhes de seu funcionamento. Daí muitas de nossas intervenções resultarem em prejuízos, quando não em desastres.

Seria o caso de jogar a toalha e reconhecer que não há como melhorar a natureza? Que qualquer “mexidinha” vai quebrar o delicado cristal que nos foi legado? Talvez, se acreditarmos que a natureza é perfeita e que o perfeito só pode ser mudado para pior. Mas não é o caso. Por exemplo, um pequeno percentual de seres humanos é geneticamente – leia-se naturalmenteintolerante ao glúten contido no trigo e em cereais aparentados. A essa intolerância dá-se o nome de doença celíaca, que tanto pode ser assintomática como, no extremo, causar câncer. Essas pessoas têm de passar longe do trigo e de qualquer outra fonte de glúten. Nossa adaptação ao trigo não é perfeita. Simplesmente porque a natureza não o é, pelo menos não no sentido de que faz tudo da melhor forma possível para nós, humanos3.

A natureza nos desafia com inúmeros perigos, na forma de doenças congênitas, epidemias, intempéries, hecatombes e ameaças globais de extinção. É ingenuidade supor que somos os queridinhos dela e que para não ter problemas basta sermos bem comportados. E que todo nosso infortúnio, especialmente no âmbito da saúde, se deve a alguma “malcriação” da nossa parte4. As coisas não funcionam assim. A mesma genética que faz alguns de nós intolerantes ao glúten nos dá nossa cota de daltônicos, anêmicos falciformes, intolerantes à lactose, diabéticos tipo 1, leucêmicos infantis e outros “naturalmente” desafortunados. Ratos causam doenças contagiosas e mortais, gafanhotos podem arrasar plantações inteiras, furacões podem destruir cidades. Tudo isso desde muito antes de o homem ser capaz de causar em larga escala qualquer desequilíbrio ambiental ou, especificamente, climático. Que ação humana pode ser responsável pela explosão de Krakatoa ou pelo grande tsunami de 2004? Quem de nós será culpado por uma eventual queda de asteroide capaz de varrer a humanidade da face da terra?

Esses exemplos extremos revelam que nem sempre a salvação vem da adesão estrita aos processos naturais. Pelo contrário, muitas vezes só é possível escapar subvertendo a natureza e recorrendo ao que só nós, humanos, somos capazes de fazer. Nem sempre somos os vilões da história. Munidos do conhecimento devido, ainda podemos sair como heróis.

Respondendo à pergunta que fechou o primeiro parágrafo, podemos concluir que o problema de interferir na natureza não está na intensidade dessa interferência, mas no grau de (des)conhecimento que temos em relação ao processo natural em que interferimos. Os detalhes disso ainda rendem outro artigo.


2 Estou contando aqui adaptações que precedem o consumo direto de trigo por humanos, iniciado há uns 11.500 anos.

3 Uma parcela de meus leitores, criacionistas que são, talvez fique um tanto chocada com minhas afirmações. Mas a imperfeição da natureza é reconhecida até na Bíblia. Um exemplo dessa constatação está em Romanos 8:20 a 22.

4 Permitam-me mais um exemplo bíblico: os discípulos achavam exatamente isso, mas Jesus lhes corrigiu o equívoco. João 9:1 a 3.

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