Em dois artigos anteriores1, tratei do antagonismo, sustentado pelo senso comum, entre o natural e o artificial. Deixei no ar a pergunta: o potencial de dano à natureza, por parte de um artefato ou procedimento, seria diretamente proporcional ao grau de artificialidade envolvido no mesmo?
Tomemos como exemplo o alimento mais
consumido pelos seres humanos: o trigo, cuja farinha é usada
no preparo de inúmeros tipos de comida. Refinada, essa farinha
perde muitos de seus nutrientes, além de se tornar mais
indigesta. Está aqui uma forma muito simples de
artificialidade, conhecida há milênios, que nada tem de
sofisticada. Não envolve engenharia química
ou genética, transgenia nem física nuclear. Mesmo
assim, é reconhecidamente danosa para a saúde humana.
Não é à toa que profissionais de saúde
recomendam, a quem quer ter uma vida saudável, trocar a
farinha refinada pela integral.
Por que uma coisa
tão básica – o peneiramento de uma farinha para
remover farelo e germe nela incluídos – é capaz
de resultar num prejuízo nutricional tão grande? Porque
a adequação do trigo à alimentação
humana é o resultado de um delicado equilíbrio
construído ao longo de toda a história evolutiva das
duas espécies, uma história que tem milhões de
anos – bilhões, se contarmos o período
pré-cambriano da vida2.
É muito difícil alterar qualquer dos elementos dessa
relação interespecífica sem quebrar
esse equilíbrio. Num certo sentido, as adaptações
por que humanos e trigo passaram para se adequar tão bem um ao
outro embutem uma forma de conhecimento
que não pode ser adquirido de modo trivial, o que torna muito
improvável melhorar essa relação num golpe de sorte. Isso porque somos – os seres vivos –
uma espécie de laboratório em permanente
experimentação, numa sinergia que envolve inúmeros
ciclos de tentativa e erro ao longo de milhões de gerações.
As experiências infelizes são descartadas via seleção
natural. As bem-sucedidas permanecem pela transmissão do
sucesso genético à descendência de cada espécie.
Não dá pra competir com o conhecimento acumulado por
esse laboratório sem primeiro entender os detalhes de seu
funcionamento. Daí muitas de nossas intervenções
resultarem em prejuízos, quando não em desastres.
Seria o caso de jogar a toalha e reconhecer que não há como melhorar a natureza? Que qualquer “mexidinha” vai quebrar o delicado cristal que nos foi legado? Talvez, se acreditarmos que a natureza é perfeita e que o perfeito só pode ser mudado para pior. Mas não é o caso. Por exemplo, um pequeno percentual de seres humanos é geneticamente – leia-se naturalmente – intolerante ao glúten contido no trigo e em cereais aparentados. A essa intolerância dá-se o nome de doença celíaca, que tanto pode ser assintomática como, no extremo, causar câncer. Essas pessoas têm de passar longe do trigo e de qualquer outra fonte de glúten. Nossa adaptação ao trigo não é perfeita. Simplesmente porque a natureza não o é, pelo menos não no sentido de que faz tudo da melhor forma possível para nós, humanos3.
Seria o caso de jogar a toalha e reconhecer que não há como melhorar a natureza? Que qualquer “mexidinha” vai quebrar o delicado cristal que nos foi legado? Talvez, se acreditarmos que a natureza é perfeita e que o perfeito só pode ser mudado para pior. Mas não é o caso. Por exemplo, um pequeno percentual de seres humanos é geneticamente – leia-se naturalmente – intolerante ao glúten contido no trigo e em cereais aparentados. A essa intolerância dá-se o nome de doença celíaca, que tanto pode ser assintomática como, no extremo, causar câncer. Essas pessoas têm de passar longe do trigo e de qualquer outra fonte de glúten. Nossa adaptação ao trigo não é perfeita. Simplesmente porque a natureza não o é, pelo menos não no sentido de que faz tudo da melhor forma possível para nós, humanos3.
A natureza nos desafia com inúmeros perigos, na forma de doenças
congênitas, epidemias, intempéries, hecatombes e ameaças
globais de extinção. É ingenuidade supor que
somos os queridinhos dela e que para não ter problemas basta
sermos bem comportados. E que todo nosso infortúnio,
especialmente no âmbito da saúde, se deve a alguma
“malcriação” da nossa parte4.
As coisas não funcionam assim. A mesma genética que faz
alguns de nós intolerantes ao glúten nos dá
nossa cota de daltônicos, anêmicos falciformes,
intolerantes à lactose, diabéticos tipo 1, leucêmicos
infantis e outros “naturalmente” desafortunados. Ratos
causam doenças contagiosas e mortais, gafanhotos podem arrasar
plantações inteiras, furacões podem destruir
cidades. Tudo isso desde muito antes de o homem ser capaz de causar
em larga escala qualquer desequilíbrio ambiental ou,
especificamente, climático. Que ação humana pode
ser responsável pela explosão de Krakatoa ou pelo
grande tsunami
de 2004? Quem de nós será culpado por uma eventual
queda de asteroide capaz de varrer a humanidade da face da terra?
Esses
exemplos extremos revelam que nem sempre a salvação vem
da adesão estrita aos processos naturais. Pelo contrário,
muitas vezes só é possível escapar subvertendo a
natureza e recorrendo ao que só nós, humanos, somos
capazes de fazer. Nem sempre somos os vilões da história.
Munidos do conhecimento devido, ainda podemos sair como
heróis.
Respondendo
à pergunta que fechou o primeiro parágrafo, podemos
concluir que o problema de interferir na natureza não está
na intensidade dessa interferência, mas no grau de
(des)conhecimento que temos em relação ao processo
natural em que interferimos. Os detalhes disso ainda rendem outro
artigo.
2 Estou contando aqui adaptações que precedem o consumo direto de trigo por humanos, iniciado há uns 11.500 anos.
3 Uma parcela de meus leitores, criacionistas que são, talvez fique um tanto chocada com minhas afirmações. Mas a imperfeição da natureza é reconhecida até na Bíblia. Um exemplo dessa constatação está em Romanos 8:20 a 22.
4 Permitam-me mais um exemplo bíblico: os discípulos achavam exatamente isso, mas Jesus lhes corrigiu o equívoco. João 9:1 a 3.
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