Algumas considerações.
1) Foi golpe?
2) Foi errado?
3) Foi ditadura?
4) O regime militar salvou o Brasil do comunismo?
5) Ter combatido o comunismo redime o governo militar de seus crimes?
6) Golpe é golpe. É sério que não é errado nem certo?
7) Havia alternativa ao golpe e à ditadura militar?
Não sei. De novo,
começo a pensar nos urubus. Mas eu quero trazer à reflexão as
palavras de Richard
J. Evans, premiado autor de A Chegada do Terceiro Reich:
“Depois de 20 de
julho de 1932, as únicas alternativas realistas eram uma ditadura
nazista ou um regime conservador autoritário respaldado pelo
Exército. A ausência de qualquer resistência séria por parte dos
social-democratas, os principais defensores que sobravam da
democracia, foi decisiva.”
Mais à frente, ele
reforça:
“Na segunda metade
de 1932, um regime militar de alguma espécie era a única
alternativa viável à ditadura nazista. (…)
Depois de Papen, não havia volta. Havia se criado na Alemanha um
vácuo de poder que o Reichstag e os partidos não tinham chance de
preencher. O poder político havia se esvaído dos órgãos legítimos
da Constituição em parte para as ruas e em parte para a pequena
facção de políticos e generais em torno do presidente Hindenburg,
deixando um vácuo na vasta área entre ambos, onde acontece a
política democrática normal. (…)
Numa situação dessas, era provável que só a força obtivesse
sucesso. Apenas duas instituições possuíam-na em escala suficiente.
Apenas duas instituições poderiam operá-la sem incitar reações
ainda mais violentas por parte da massa da população: o Exército e
o movimento nazista.”
É claro que Evans não defende que um regime
militar seria um regime “bom” para a Alemanha. A questão é que
não havia alternativa democrática.
Como eu disse, não há democracia possível onde não há quem lute
por ela. Ou onde quem luta por ela não tem força para fazê-la
prevalecer.
Em resumo, Evans diz que uma
ditadura militar seria como qualquer ditadura: brutal, violenta,
arbitrária, autoritária. Mas não desencadearia sobre a
Alemanha e o mundo o horror que o nazismo trouxe.
Ainda
Evans:
“Mas
é improvável que, no saldo geral, uma ditadura militar na Alemanha
tivesse deslanchado o tipo de programa genocida que encontrou
culminação nas câmaras de gás de Auschwitz e Treblinka.”
As
perspectivas para a Alemanha
eram
tão tenebrosas que,
se a alternativa imaginada
por Evans tivesse se concretizado, hoje
os livros de história poderiam estar condenando sem reservas
mais uma ditadura militar sem
ter a mínima ideia dos
horrores que ela tinha evitado. A
propósito, tal ditadura seria apenas mais uma das muitas que
pipocaram em toda a Europa de
então, nascidas basicamente do mesmo tipo de crise.
E como a
Alemanha, em particular,
chegou a isso? Atrevo-me
a resumir uma coisa muito complexa em duas palavras: comunismo e
nazismo. Embora nenhum deles
tenha obtido a maioria parlamentar, os partidos Nazista e Comunista
haviam
se tornado as duas maiores forças políticas da República de
Weimar. Ocorre que os dois partidos eram inimigos mortais da
“democracia burguesa”
(expressão derrogatória que
intelectual esquerdista
adora usar
ainda hoje).
Evans
continua:
“No
geral, o Reichstag ficou ainda menos controlável do que antes. Agora
100 comunistas confrontavam 196 nazistas através da câmara, ambos
os lados decididos a destruir um sistema parlamentarista que odiavam
e desprezavam.”
Como uma
democracia lida, democraticamente, com seus inimigos declarados?
Vamos
de Evans outra vez:
“Joseph
Goebbels foi bastante explícito quando ridicularizou em público ‘a
estupidez da democracia. Uma das melhores piadas da democracia será
sempre ter propiciado a seus inimigos mortais os meios pelos quais
foi destruída.’ (…)
Democracias sob a ameaça de destruição encaram o dilema
insuportável de se render à ameaça insistindo em preservar as
sutilezas democráticas ou violar seus princípios restringindo os
direitos democráticos.”
Os alemães
estavam espremidos entre social-democratas
que não tinham mais força política, conservadores que não queriam
ver repetir-se
ali a devastação que o comunismo já tinha feito na Rússia,
comunistas que queriam
repetir aquela devastação e nazistas que se apresentavam como a
única força capaz de botar ordem naquela bagunça, que
eles mesmos ajudavam a criar e manter.
Não havendo saída
democrática possível, apenas escolhas que implicavam uso da força,
os alemães fugiram do horror comunista para
acolher a salvação oferecida pelos nazistas. Sim, os nazistas
“salvaram” a Alemanha do comunismo…
Em suma:
há crises das quais não há saída democrática, porque as forças
envolvidas não são
democráticas. Na menos
maligna das
hipóteses, uma das forças, ao
menos comprometida com a paz social e o respeito à dignidade humana,
pode assumir o poder à
força – sim,
eu estou falando de golpe, revolução, rebelião, intervenção, o
que estiver ao alcance
–, banir do jogo político
os agentes antidemocráticos
– sim, eu estou falando de
cassar mandatos, prender, julgar, condenar, em
último caso até executar gente do naipe de
nazistas, fascistas, socialistas e comunistas – e manter um estado
de exceção até que as condições políticas permitam o
retorno à normalidade democrática.
Como fazer isso sem degenerar
em ditadura e violação
sistemática dos direitos humanos? Não sei, coisas tão vastas estão
além do meu alcance, e uma
hipótese tão benigna não passa disso: uma hipótese. O mais
provável é que gente sem apreço por
democracia ou direitos humanos usurpe o poder, pretensamente
em nome a ordem e da lei, e
só largue o osso depois de derramar
muito sangue inocente.
Ainda assim, é
didático observar que constituições
perfeitamente democráticas preveem que, em crises muito graves, os
poderes constituídos
podem recorrer a intervenção,
estado de defesa, estado de sítio e medidas igualmente extremas, nas
quais muitos direitos democráticos fundamentais podem ser suspensos
até que a crise seja debelada.
Fica a lição
de que democratas não podem ser ingênuos: seus
inimigos não têm o menor pudor de passar por cima deles, de suas
leis, de seus
direitos humanos, de suas
vidas,
de tudo que se puser no
caminho desses
facínoras rumo a sua tirania
de estimação.
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